Nina Horta

Escritora e colunista de gastronomia, formada em educação pela USP.

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Nina Horta

Só ele seria capaz de nos salvar

Jornalista especializado em ciência e temas militares, Ricardo Bonalume Neto morre aos 57 anos

Não vou conseguir falar sobre Ricardo Bonalume Neto já homem. Só me lembrar dele pequeno. Acontece que alguns de vocês, ao chorarem sua morte, falaram dos almoços que alguns alunos do Santa Cruz frequentavam lá em casa. Acho que era dia de aula à tarde e, como morávamos perto, uma turminha aparecia, bem de surpresa, variada, amigos do Octavio e do Sylvio, meus filhos. Eu me lembro bem do Bonalume, que era anfitrião ---talvez até fizesse ele próprio uns convites. 

Ricardo Bonalume Neto em São Paulo em 2017
Ricardo Bonalume Neto em São Paulo em maio de 2017 - Gabriel Alves/Folhapress

Diferente. Não me lembro de um tempo em que não fosse meio filho, muito mimado na casa dele e nada lá em casa. Completamente à vontade, passava dias, não incomodava, era parte da família. E não eram eles que lucravam com os almoços que filavam, era eu que os fazia de cobaia quando tinha tempo. E o Bonalume era um mestre provador. Gostava de travar relações com o que comia, sabendo o nome, de preferência científico. Diante de um caldo de mexilhões, “Poderia me informar qual o animal que passarei a ingerir agora?”, e fosse qual fosse o animal ia sempre para o papo, sem problemas.

Minha filha me lembra que em dia de camarões, fazia um estoque avantajado, o triplo que lhe caberia, mas a turma estrilava e ele, com uma de suas caretas, devolvia o excesso, conformado.

Foram crescendo para lá de inteligentes, cada um tomando seu caminho, todos bons leitores e interessados pelo mundo à volta. Era muito bom conversar com eles. Começavam a descobrir seus interesses maiores. 

Uma vez o Sylvio e o Bonalume resolveram montar uma chocadeira no quarto do Sylvio. Não foi fácil, demorou, os ovos eram observados diariamente e um dia um deles começou a ser bicado, mas a ansiedade de todos fez com que saíssemos para almoçar fora e quem sabe na volta a coisa estaria mais adiantada? Tragédia anunciada. A babá que adorava os meninos todos e nem mais babá era, aflita e para agradar, descascou os ovos um por um acabando com a experiência. Talvez tenha sido por aí que a ciência do Bona enveredou para o jornalismo.

Em Paraty, de férias, o Ricardo me ensinou a importância do recipiente no serviço da comida. Adoeceu, era acometido de bronquites a três por dois, e como estava de cama e eu fazendo o almoço, levei para ele uma xicrinha cheia de caldo de feijão bem grosso. Guloso, foi provando e cuspindo imediatamente tudo em mim, pois pensara que era café, o que trouxe à baila uma discussão sobre conteúdo e continente. 

Dessa vez teve que voltar para São Paulo, onde foi cuidado pela avó a tempo de voltar e se queimar ao sol de vermelho escarlate incandescente, pois era alvo como o mármore da Pietà.

Me lembro dele na rede, lendo Shogun sem parar, e a surpresa do último dia quando os amigos roubaram as últimas páginas. Eram todos da paz, não me lembro de uma briga entre eles. Foi se afeiçoando por Nero Wolf, por Chesterton, talvez? George Orwell. Mas, engraçado, eu não me lembro de conversas de guerras, só de umas enciclopédias grossas sobre aviões. Da Jane's, que meus filhos pelo menos estudavam e comentavam sem parar. Logo se percebeu que o Bonalume escrevia muito bem, era inteligível em ciência, feito complicado. 

O combustível mais apreciado pelo Bona era Bis. Não havia o que chegasse... Gostei de ver uma foto dele sereno, com a mulher, sem fazer caras e bocas, porque era raríssimo que não estivesse experimentando uma nova expressão, ou de surpresa, ou sarcasmo, ou dúvida, sempre no palco, chamando atenção para si, contando uma história bem alto, explicando um fato desconhecido.

Viajava e mandava cartões e aparecia com presentes, livrinhos de cozinha exóticos garimpados em sebos. Trazia as namoradas para nossa aprovação, feliz da vida, envesgando os olhos apaixonados. Comeu Natais, Anos-Novos, Páscoas, aniversários, até o dia em que ele próprio começou a ensaiar suas comidas, seus curries, nada de comível lhe era estranho, e agora, com Anita, teve a felicidade de encontrar uma "patroa" que chegou a mudar de profissão e alimentá-lo na boca, de tão mimado que ficou. 

Teria muito mais coisa a me lembrar, mas só queria dizer do nosso carinho por você, Bona.

PS: Lembrança recente. Peguei uma tradução para fazer na Folha e vi que só havia uma coisa intraduzível. Postos, medalhas, nomes de ajudantes de ajudantes de ajudantes em exércitos improváveis. Na hora H, liguei para o Bona, que estava viajando! Fui obrigada a falar com a Folha e explicar que me fiara na presença de um amigo e se a dona da tradução poderia me dizer onde procurar esse tipo de coisa, se ela poderia me indicar um dicionário. A resposta foi breve. “Eu também me valho do Bonalume. Só ele seria capaz de nos salvar.” 

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