Nina Horta

Escritora e colunista de gastronomia, formada em educação pela USP.

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Nina Horta

Ah, aqueles olhos brilhando ao chupar um pescoço de frango

Tem gente fascinada com osso, o que posso eu fazer?

Tutano assado com salada de salsinha - Divulgação

Ossos. Só ossos. Posso, não posso. Só? Um prato magro. O que faz alguém gostar de ossos sem cartilha, sem professor, só o osso... Sustenta?

O osso do peito da galinha prevê o futuro, ao se quebrar grita a nossa sorte. Quem não gosta do ossinho da asa, crocante, quebra dente, poderoso osso. E da carne e da gordura do ossobuco? Da pescagem do tutano. Músculos, tecido conjuntivo, colágeno, rabada. São nomes de comida ou diagnósticos médicos?

Quem gosta de osso só pode ser cachorro ou ter traços de borderline, aquela intensa vontade de ser feliz a todo preço, a todo osso.

Reparem na tristeza de quem não come com as mãos e vê no restaurante sua carninha sendo levada embora, ali, a melhor, grudada no osso. Há os que exageram, não só roem os ossos como os colecionam, deleitam-se com as cores do leite ao marfim, toques de Georgia O'Keeffe, caveiras, chifres sobre os portões das áreas secas.

A moleza do tutano dentro da dureza do osso, os olhos de minha mãe brilhando ao chupar o pescoço do frango. Agulhas de tricô, batendo clac-clac, desenhando mantas. Mantas tecidas de ossos, ossos na terra desabrochando em flores, fazendo bolas de sabão.

Tem gente fascinada com osso, o que posso eu fazer? Sustentam nosso corpo, são gostosos de roer. Agora, nesse frio, uma sopa de lentilhas passadas na peneira e bem no meio um tutano com colher do lado, vai ser um gozo de osso.

Ossos em rendados entalhes, pentes dobráveis de osso no bolso do meu marido, plástico? É melhor? Todos se enganaram, inclusive as tartarugas engasgadas e os donos de quiosques. Os ossos sempre são melhores, a rainha Vitória passava no pão, no chá das cinco, bem batido, leve como manteiga.

Peço ao açougueiro costelinhas com restos de carne, faço ao lado uma marinada com molho de soja, açúcar mascavo, gengibre, alho e temperinhos desses que os chineses gostam. E cerveja, lager, misture tudo, deixe lá por oito horas. Leve ao fogo do fogão, é um molho cheio de sucos, suco de ossos, deixe cozinhar um pouco, acabe no forno, não vai ficar muito seco, dá um molho saboroso, osso, molho de osso. Coma com a mão, é mais gostoso.

A paleta, o osso do ombro de um porco, você pode macerar com laranjas sanguíneas, ou laranjas simplesmente. O segredo mesmo é o Campari e o alho, e os cravos, e o azeite. Vai bem com bebidas um osso gostoso, ácidas e doces ao mesmo tempo. Ossos como chocalhos diria Augusto dos Anjos.

Podem me prender, mas não se prende só pelas vontades. Depois que vi os franceses comendo aquelas avezinhas, os ortolans, só uma vez por ano. Imaginem, um sabiá gorducho! É. E as sardinhas. E nessas pesquisas descobri que os ossos que Picasso deixou no prato eram os de um linguado, sole à la meunière, o peixe inteirinho. Com ossos que engasgam podemos fazer obras de arte...

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