Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Nosso estranho amor

Vera mudou a nossa vida na pandemia

Vera chegou num carro azul e quando a vi descendo do veículo pensei ter acertado

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Milly Lacombe

"Eu a vi pela primeira vez numa rede social. Nesse dia, como em tantos outros, deixava o dedão deslizar pela tela do celular displicentemente até que um certo perfil apareceu e me fez parar. Chamei minha mulher e mostrei a imagem: 'O que acha?', perguntei. 'Ela se chama Vera', emendei. Fazia um tempo que falávamos sobre realizar uma nova estripulia, mas estávamos inseguras. "Será?", perguntou minha mulher. Num ímpeto, mandei mensagem —justo eu, que não sou dada a imediatismos. Combinamos de nos encontrar na praia no dia seguinte.

Vera chegou num carro azul e quando a vi descendo do veículo pensei ter acertado. Como em todo o primeiro encontro, estávamos tímidas. Ainda assim, fomos andando devagar rumo a minha casa e eu, numa empolgação que agora me soa apressada e infantil, disse: 'aconteça o que acontecer, eu já gosto muito de você'. Ela me olhou sem dizer nada, mas notei que havia em sua reação um certo receio. Será que eu estava forçando a barra? Tinha feito a coisa certa tomando uma decisão de forma tão abrupta?

Assim que entramos pela porta ela se sentou e ficou me encarando. Eu me sentei ao lado dela tomando o cuidado de não fazer movimentos bruscos. Nesse instante, minha mulher apareceu na sala: 'Bem vinda, Vera'.

Vera olhou para cima e não desviou mais os olhos de Paola. Aconteceu a mesma coisa comigo na noite em que, uns anos antes, finalmente enxerguei Paola num bar em Botafogo: não desviei mais o meu olhar. 'Te entendo, Vera. É hipnotizante mesmo', eu disse. 'Vamos para o chuveiro?', sugeriu minha mulher. Achei apressado, mas talvez Vera relaxasse.

De banho tomado, foi reconhecer a casa começando pelo quarto, sala de jantar e sala de estar, onde achou razoável fazer um cocô —aliás, bastante grande para suas proporções miúdas. Fomos para o sofá e ficamos olhando a nova moradora. Nina, a irmã, pareceu não ligar muito para o babado. Passamos assim o resto daquele sábado de primavera.

Vera precisou de alguns dias para começar a revelar sua personalidade. O que mais gosta de fazer na vida é passear —desde que ela mesma escolha o trajeto. Não aceita intervenções e, quando tentamos nos impor, ela senta e olha para cima como quem diz: 'Não, não. Vamos para aquele lado de lá agora'. Vera passeia petulantemente.

Quando cruza com outros cachorros tem uma de três reações: brinca carnavalescamente, parte para o pau ou ignora dolorosamente. Em casa, deita sobre nossas barrigas ou pernas onde quer que estejamos: o negócio dela é aglomerar.

Quando faz coisa errada e se percebe flagrada vai abaixando de mansinho até deitar rendida com as patinhas para cima. Corre atrás da bolinha achando que é preciso repetir o movimento do objeto que quica no chão, o que nos faz gargalhar. E essa é sua maior característica: ela faz a gente rir.

Vera entrou em nossas vidas quando a pandemia já tinha avisado que não sairia tão cedo. Estávamos cansadas, desanimadas, desarticuladas, e a chegada dela promoveu transformações imediatas. Ela nos obrigou a olhar para um outro lugar e ajudou a perceber que se existe uma chance de passarmos por isso vai ser valorizando e celebrando as frestas; Vera nos ensina sobre as coisas miudinhas: um passeio numa manhã de sol, um pique alegre atrás da bolinha, o cafuné no sofá num fim de tarde qualquer.

Olhar muito à frente tem sido desesperador, mas olhar para baixo e enxergar Vera e seu jeito exuberantemente divertido de levar a vida tem sido libertador. Um passo de cada vez. Uma respiração de cada vez. Um dia de cada vez."

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.