Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor

O amor entre mulheres e outras maravilhas

A revolução, senhoras e senhores, vai ser sapatão

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Milly Lacombe

Era sábado e eu estava no supermercado, com óculos e máscara N95 como manda o manual desse mundo distópico, quando o celular tocou. Faz mais de um ano que saio de casa com os trajes de quem passeia pelo apocalípse e ainda não me acostumei com o incômodo dos óculos que embaçam e da máscara que me protege da morte, mas embaralha minha fala e minhas ideias. Estava fazendo compras para minha ex-mulher que, infectada com o vírus, precisava de mantimentos. Vi que a ligação era de outra ex-mulher, que, notando que eu não atendi, mandou mensagem: “Tô comprando almoço naquela hamburgueria que a gente gosta. Tá com fome? Te levo? Atende! Anda!”. O amor e suas manifestações de impaciências e carinho que eu chamo de “impacirinho”.

Fomos, desde pequenas, treinadas para internalizar a consciência de que mulheres competem entre si, de que mulheres roubam os namorados umas das outras, de que não existe lealdade entre amigas —ao contrário dos homens, que são extremamente fiéis a outros homens. A lesbiandade me fez entender a crueldade dessa sentença e também que não existe no universo uma teia mais potente de cuidado do que aquela construída por mulheres.

Respondi que já tinha almoçado e agradeci. Em seguida, fui levar as compras para a Tati.

Ela apareceu na janela e acenou gritando que me amava, mas que se eu pegasse Covid ela talvez não soubesse cuidar de mim como eu estava cuidando dela. Desatino. Existem muitas formas de cuidar, e Tati cuida de mim me mantendo sã das ideias. Fora isso, respondi também gritando da rua, que se eu ficasse doente esse trabalho mais logístico provavelmente seria executado pela Buchê e pela Ducha, outra de minhas ex-mulheres e a mulher dela, duas pessoas movidas por um tipo de potência realizadora que tem a força de três Itaipus.

Já no carro, recebi mensagem de Paola, minha mulher, que estava em outra cidade, querendo notícias da Tati. Eu disse que estava saindo da casa dela e que ela ia ficar bem. Paola então mandou uma foto das flores de aniversário que tinha acabado de receber, enviadas por Buchê e Ducha. Ela, que é bissexual e entrou há pouco tempo nessa ciranda lésbica de cuidados, estava bastante comovida com o gesto. Eu ri me fingindo muito acostumada com a usina de amor sapatão, mas a verdade é que eu não canso de me emocionar com tanta produção de carinho.

Uma história de amor entre mulheres nunca acaba de fato. Ela se transforma, se renova, se reescreve. Mas, como qualquer relação humana, é também cheia de complexidades, de desencontros e de frustrações. Para que tenhamos a ousadia de usar a palavra amor numa relação devemos estar dispostas a praticar cotidianamente ações de atenção, disciplina e responsabilidade. Dispostas a encarar desacordos, debates, tristezas e decepções. Há, claro, separações e sofrimentos —todas essas dimensões de complicação fazem parte do pacote lésbico de relacionamento. Mas a lesbiandade me mostra, todos os dias, o que a união de mulheres é capaz de mobilizar. E que esse processo é revolucionário porque, como diz o professor e filósofo Vladimir Safatle: “Só é possível operar transformações na vida social se pudermos ser afetados de outras formas. Transformações políticas não são questões de novas ideias, mas de novos afetos. Não são novas ideias que produzem grandes transformações; são novos afetos que produzem grandes ideias”. Por isso, ao circularmos atenção, cuidado e carinho, o que estamos fazendo é mudando o mundo, um circuito de afeto lésbico por vez. A revolução, senhoras e senhores, vai ser sapatão.

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