Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor

A primavera fúcsia

Do meu marido não sobrou nada. Do homem com quem me casei, não há nada. Nem no olhar

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Pedro Mairal

Escritor argentino, é autor de "A Uruguaia", pelo qual recebeu o prêmio Tigre Juan de melhor romance em 2017, e de "Uma Noite com Sabrina Love" (2000), entre outros. Ambos foram lançados no Brasil pela Todavia.

Às vezes imagino como a notícia seria publicada nas páginas policiais: Aposentada mata o marido com uma pancada de frigideira e sai de férias. Eu iria para a Austrália, sempre achei o nome lindo. Não sei o que tem por lá. Cangurus, crocodilos, aquela sala de ópera que parece uma laranja cortada em pequenos gomos. Não faço ideia, mas me soa longe, me soa a luz, mar, tudo parece turquesa. E a distância! Do outro lado do globo! Longe daqui. Produzir um escudo de milhares de quilômetros. Quantos quilômetros serão daqui até a Austrália? Quarenta mil? Um escudo invisível de quarenta mil quilômetros. Longe dele. Embora ele já fosse estar frio, no nicho. Às vezes ele diz que quer que o cremem quando morrer. Eu o cremaria, por via das dúvidas. Ainda que talvez não reste mais corpo algum. Eu poderia moê-lo, não? Quanto tempo eu levaria para triturá-lo com a Moulinex? Vou desmembrando-o. Então quer dizer que eu acabei com a sua vida porque queimei um bifinho, Rodolfo? Pum! Uma frigideirada. Ou melhor, dou-lhe com a grelha dos bifes, de ferro pesado. Depois eu o pico, moo. A cabeça deve ser o pior. Os olhos. Não entra no liquidificador. E olha que o liquidificador é grande, ele insistiu tanto para ser esse, que mói gelo, que parte os ossos dos frangos para fazer caldo... Ele gosta de pôr tudo no liquidificador, porque anda às voltas com o assunto dos dentes. Mingau, suco, purê. Põe tudo no liquidificador e depois ele mesmo mergulha em sua sopa verde. Aperto o botão de ligar, máxima potência, full, full. Acho que em uma tarde dá para triturar. E usando a lâmina grande, essa que é como um machado. Outro título: Tritura o marido no liquidificador e vai para a Austrália. E vão atrás de mim com a Interpol, vão me rastreando em hotéis de onde acabo de sair, me seguem, me capturam longe, em um deserto de pedras vermelhas, e me filmam quando me trazem de volta ao país, quando chego ao aeroporto, cheio de jornalistas. Por que matou o seu marido, Graciela? É verdade que você o triturou com o liquidificador? E eu não respondo, não digo nada, eu estaria usando óculos grandes, esses óculos escuros de viúva de toureiro espanhol da revista Hola, bem ereta, digna, e não provariam nada contra mim, me deixariam ir e depois me convidariam para a televisão. É verdade, Graciela? A senhora fez isso? Sim, é verdade, eu o matei, ele já tinha cumprido seu ciclo, não seu ciclo comigo, mas seu ciclo vital, já estava vencido pela vida, um monstro rabugento no sofá, cada vez mais encurvado, Graciela, me traz os comprimidos, Graciela, as pantufas, feche esta janela, onde estão os meus óculos, Graciela! Ele vai viver mais dez anos assim, como uma coisa que reclama, protesta, enche o saco, cospe veneno deste sofá. Enviá-lo a outra dimensão nesse mesmo sofá. Do meu marido não sobrou nada. Do homem com quem me casei, não há nada. Nem no olhar. Outro dia encontrei as fotos da lua de mel. Ele era bonitão. E eu, em compensação, estou bem, caminho bem, tenho força. 77. Quero viajar. Com uma capelina, serei a mulher misteriosa do tour. Dinheiro tem. O parafuso do rodapé sem pintura. E atrás o maço verde em um ziploc. A cada tanto averiguo que esteja ali. Mas ele quer guardar o dinheiro, para quando fizermos a área de lazer nos fundos do jardim. Que área de lazer uma ova, Rodolfo! Que área de lazer você vai fazer com esse dinheiro? Para quê? Que oficina de carpintaria? Por favor! Com este pulso de terremoto japonês, querido. Você vai cortar um dedo por semana. Vai se picotar sozinho, o senhor. Melhor, menos trabalho para mim. Nenhuma área de lazer nos fundos do jardim. Nos fundos do jardim vou te enterrar, Rodolfo. E em cima vou plantar uma primavera gigante e de cor fúcsia, para que toda a sua amolação se transforme em alguma coisa.

homem põe a mão no coração enquanto gotas de sangue caem sobre ele
Luiza Pannunzio/Folhapress

Tradução de Livia Deorsola

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