Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
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O meu Golias

Ele confia em meu plano diretor, que não é nenhum segredo: sermos felizes, sem depender de ninguém

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Pedro Mairal

O meu Golias anda por aí, dando voltas pela casa. Meu soldado gigante. Já o vejo meio ofuscado, ensombrecido por alguns dias de abstinência que lhe vou impondo com evasivas. Dias em que não quero, e ele quase nem pergunta nada, ele percebe, porque eu, nessas noites, uso o que secretamente chamo de "o pijama dissuasivo". Um pijama de tecido grosso, meio áspero do lado de fora, que comprei numa emergência, em uma viagem na qual fez muito mais frio que o esperado.

Esse pijama o dissuade de tentar, de dormir de conchinha, é o pijama do não. Nunca falamos disso abertamente, mas é algo implícito. Lá se vão seis noites assim, e já o vejo como um touro embrutecido, sua cabeça pesa, não sabe o que há de errado com ele.

Ontem consegui fazer com que ele consertasse várias coisas. Aquela porta da despensa que estava frouxa. Quando ele estava saindo do banho, soltei um grito na cozinha. O que aconteceu? Ele veio alarmado. Esfreguei a lateral da minha cabeça. Essa maldita porta da despensa, eu disse. Vou consertá-la, ele disse. Sim, mas quando, amor? Faz semanas que você está dizendo isso. Bem, agora conserto.

Homem de costas no banho, aparecendo da cintura para cima
Efes por Pixabay

Então começou a fazer isso, com suas ferramentas. Eu não tinha batido a cabeça coisa nenhuma, mas funcionou. E sei que quando ele pega a caixa de ferramentas tenho que aproveitar. Que sexy o meu "handy man", eu disse ao vê-lo atarefado com a chave de fenda, e passei a mão por suas costas, por debaixo da camiseta. Por aquelas costas de animal que ele tem. E ele adorou; o gesto foi pura promessa erótica.

E aproveitando, mostrando a ele uns suportes do varal, eu disse: Isso também está frouxo. E assim o fui recrutando para várias coisas que tinham que ser consertadas. Porque é uma energia que cresce dentro dele, puro desejo sexual, como um gerador elétrico que fica aceso. É preciso saber usá-lo. Faço com que a energia se acumule por meio da abstinência, e o gerador se recarrega sozinho.

Ele pesa mais de 100 quilos e eu, 49. Estica o braço e eu consigo passar por debaixo, sem que ele toque a minha cabeça. Trabalha em uma empresa de sistemas de informação, mas em casa ele é o meu jornaleiro, a minha mão de obra qualificada, o meu cuidador, o meu guardião, o meu mordomo.

No sábado vou te encher de beijos, eu digo, e é como se duas espirais girassem em seus olhinhos. Ele entra em modo de hipnose e eu o faço rastelar o jardim, cortar a grama, limpar as canaletas. Falamos de datas de viagens, eu não poderia ficar três noites na casa dos pais dele, e sim uma, por causa do trabalho. É melhor que ele vá antes e eu chego depois. E ele cede.

Assim negociamos outros programas na agenda, quem dos dois se encarrega do quê e quem vai, e quem passa para buscar, e quem tem que se lembrar. Vou eu, ele diz, eu posso, não tem problema, passo para buscá-lo. Ele faz suas jogadas de xadrez, mas sempre em curtíssimo espaço de tempo, uma ou duas jogadas, para ver se consegue alguma coisa. E o deixo lançar seu movimento, que eu já tinha previsto completamente. Já tenho a partida inteira na cabeça.

Acho que ele sabe disso, o que o tranquiliza. Confia em meu plano diretor, que não é nenhum segredo: sermos felizes, sem depender de ninguém. Não é nada maquiavélico. Ter uma vida mais ou menos estável, e para isso é preciso se organizar. Nós nos completamos bem.

Então, no sábado, quando o meu marido já é quase um monstro sofredor, tomamos banho juntos e eu o levo para a cama agarrado à sua virilidade, e ele urra de prazer. Ele me esmaga, parece que vai me matar com seu peso, com seus músculos, com sua insistência pélvica. Toma, ele diz, toma, como se fosse sua grande revanche depois de vários dias de submissão. E eu lhe digo: Vem, meu amor, vem com tudo. É um homem forte e bonito. Vem com tudo, minha vida. E ele grunhe, começa a desmoronar, o meu Golias, se choca contra o meu campo de força. Vem com tudo, se quebra em mim feito uma onda gigante e depois fica manso, adormecido sob as carícias que faço em seus cabelos.

Tradução: Livia Deorsola

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