Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
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A giganta

A terra era você e eu te percorria como fazíamos sempre

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Pedro Mairal

Sonhei que te trazia de volta. Era você, mas também era a nossa zona secreta, você era o morro nos arredores do povoado. Não sei bem como explicar. No sonho fazia sentido. Você estava adormecida ao meu lado e era também as curvas do caminho que nos levava ao canavial onde nos encontrávamos. A minha mão sobre o seu quadril caía pela sua cintura, deslizando pela ravina, o declive que nos levava a nos magnetizar no matagal. A terra era você e eu te percorria como fazíamos sempre. Eu te abraçava nua, ia descendo a minha mão pelas suas costas até chegar a esse lugar preciso onde a polpa do meu dedo tocava o fim das suas costas e o começo da sua bunda redonda, a bifurcação das nádegas, e eu me detinha aí, nesse lugar exato. Qual era o meu lugar favorito no mundo? Esse. O final das suas costas.

Nesta época, quando acabava o expediente no supermercado San Carlos, na volta eu andava pelo morro com a minha carabina caçando curicacas ou algu m pombo grande. Tinha pontaria perfeita. Disparava de longe. E um dia te vi voltando pelo caminho de terra com a bolsa grande das compras e perguntei se você queria subir na moto. Você disse que não, mas no dia seguinte disse que sim. Você descia da moto antes da entrada do povoado, para que não te vissem comigo. Uma tarde te chamei para caçar pássaros e nos esquecemos de caçar, nos beijamos sob a luz verde do canavial. Era ali que nos encontrávamos. Nós dois com 16 anos. Às vezes você tinha marcas na pele. O meu padrinho, você disse quando te perguntei, e baixou o olhar. Esse padrinho bêbado e violento que de vez em quando eu via pescando nas pedras. Um dia eu mato ele, você disse.

Estátua de pedra
Christina Altwicker por Pixabay

Mas aconteceu o contrário. Te encontraram morta no terreno baldio atrás do lava-rápido de caminhões. Todos sabiam que tinha sido ele, mas não se podia provar. Ele ficou preso por algumas semanas. A sua mãe aos prantos. Eu, sem comer. Depois vendi a moto, não voltei a caçar nem a subir o morro. Nunca mais voltei ao canavial. E por uma semana esperei por ele, escondido entre as pedras, de longe. Vi-o chegar, ajeitar suas coisas, armar a vara, pôr a isca, jogar a linha. Ficou parado na beira d'água. As ondas se moviam com força nesse dia. Ele ficou na minha mira. Prendi a respiração, apertei o gatilho e o vi cair no mar. Você já sabe disso, porque com certeza na morte se sabe tudo. Ali ficou o seu assassino, servindo de comida de peixe. Toda a violência dele se desfez feito água na água. Não o encontraram e ninguém procurou muito por ele.

Agora você é essa terra, essa umidade, esse riso que se apagou tão cedo, mas que voltou ontem à noite no meu sonho. Eu estava no chão com você, adormecido com você. Era você, e você era a paisagem ao mesmo tempo, cascata, sombra, medo de pássaros no ar, centelha de sol, beijos, sexos se procurando, recantos secretos. Nos enredávamos para ser um, um abraço desesperado. Você dizia o meu nome entre súplicas, eu dizia o seu. Você era gigante e eu era gigante também. Éramos feitos da mesma matéria viva se desfazendo e se refazendo, a fúria da terra cega acontecendo o tempo todo sem parar, as mãos, a força, as raízes.

Você estava viva ontem à noite, respirando comigo, os seus pés terrosos ao lado dos meus pés terrosos, o seu cheiro de suor pelo qual eu morria, seus cabelos emaranhados entre as folhas. A grande tranquilidade que me dava saber que por fim íamos ficar juntos outra vez, porque não me sobra muito tempo aos meus 83 anos, e meus filhos sabem onde jogar as minhas cinzas, no morro. Eu sentia paz no meu sonho, pois entendia que logo vou ser terra também e vamos estar bem juntos, unidos num beijo infinito e escuro, como a noite mais secreta do mundo.

Tradução de Livia Deorsola

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