Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
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A velha que boia

Ela mergulhou nas memórias de sua mãe e recebeu o abraço do mar

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Pedro Mairal

Minha mãe gostava desta ilha. Veio com uns amigos, quando era jovem. E sempre me falava de como eram as pessoas daqui, as praias, a vila de pescadores, as baías secretas para ver o pôr do sol. Era como uma luz azul, celeste, a que ficara guardada em sua memória para sempre.

Depois morreu, depois me casei. Propus vir para a ilha em nossa lua de mel, mas meu marido não quis. Depois perdi dois bebês, depois me separei, depois me graduei como tradutora, depois me arrancaram um peito, depois me arrancaram o útero. Aos cinquenta e três, vim, pela primeira vez, à ilha, e fiquei.

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Pixabay

A princípio, eu era a argentina. Assim me chamavam. Distribuí folhetos de curso de mergulho, fui recepcionista no Village Paraíso, garçonete em vários restaurantes, fiz faxina, cuidei de crianças, fui vendedora em lojas de lembrancinhas... Trabalhei de tudo, temporada alta, temporada baixa.

E nunca deixei de me meter, ao menos uma vez por dia, no mar. Sempre faço igual. Deixo minhas sandálias, a canga e minha chave na beirinha e entro no mar até onde não dá pé. E aí boio. Todos os dias. Às vezes com chuva. E se pode ser ao meio-dia, melhor.

Boio de barriga para cima, flutuo. Não mais de cinco minutos. Deixo de ter peso, respiro, o mundo me faz de rede com seu ritmo amável, a respiração das ondas, me levanta e me abaixa e me volta a levantar, me lava aquilo que não quero ser.

O sol em minhas pálpebras fechadas faz brotar umas flores coloridas, como um caleidoscópio de formas circulares, umas mandalas de luz e sangue. O que são? Devem ter uma explicação anatômica, científica, mas as sinto e as vejo como esferas de paz cor-de-rosa nas quais me deixo naufragar.

Entrego meu corpo cortado, mutilado, minhas cicatrizes, ao mar, à mãe Iemanjá, aqui estou eu para quando quiser me levar, lhe digo sem falar. Depois saio da água de volta às minhas rotinas.

Uma tarde, atravessando os bares atrás do porto, reparei que os garçons olhavam para alguma coisa no mar, alguém tinha visto um jacaré, diziam, e tentavam adivinhar o que era que se enxergava na água.

Escutei que um deles disse: Deve ser a velha que boia. Eu não entendi, no momento. Até que um deles me viu e se acotovelaram e seguraram a risada. Depois, sim, entendi. Eu já não era a argentina, era a velha que boia. Doeu ouvir a velha, claro, mas uma vez assumido o golpe, adorei o apelido.

Sou a velha que boia e aqui sigo aguentando. Somos poucos o que ficamos. Muitos vêm e vão, alguns vêm por um tempo maior, mas voltam à Bahia. Os meninos crescem e também partem, para trabalhar nas refinarias de Camacari. Algum turista fica, passa dois verões e a pobreza começa a roer, se desespera, se enraivece, e regressa derrotado à sua cidade. Não sabem boiar.

Ficaram, temporariamente, uns amantes meus também, amores, amorecos, um par de coroas adoráveis. Mas também não sabiam boiar. Dentro d’água me solto de suas mãos, seus cheiros, suas fúrias.

Agora, faz tempo que não ando de frissom com ninguém. Melhor assim. Vinte anos que estou aqui. Aluguei o ponto da livraria, e dei o nome de A velha que boia. Vendo mais lembrancinhas que livros, é vero, mas vendo algo todo dia, e não tenho chefe.

Ao meio-dia, fecho a loja e me meto na água, me entrego ao sol e às vezes falo com minha mãe, dizendo: Mamãe, olhe, aqui estou em sua ilha, a que encontrou para mim, aquela que guardara para sempre na memória, me contagiou a luz, aqui estou, sou a velha menina que boia, na luz de seu seio, em minha cicatriz, olhe, mamãe, não vou mais aos médicos, me sinto bem e às vezes até me faz sorrir saber que outros verão o mar, que tudo vai seguir brilhando, mesmo depois, quando eu já não esteja aqui.

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