Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
Descrição de chapéu Relacionamentos

Ele tira uma última foto e vai embora

Era obcecado por essa natureza quase infotografável de Vanessa

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Nesta foto consegui captar uma coisa sua. Sim, diz Vanessa. Porque eu tirei sem que você percebesse. Ele mostra a ela a foto impressa em formato grande, em papel. Ela está na sacada, olhando ao longe, com o cenho franzido, sem perceber que a lente a mira. Um gesto típico seu, mas que desaparece assim que ela nota a câmera. Quando vê a câmera, Vanessa se torna luminosa e sorridente. Seu lado um pouco obscuro e secreto fica difícil de ser captado. Ele só conseguiu captá-lo nessa foto porque tirou sem avisá-la. Gianni, você me prometeu que não vai postar as minhas fotos no Instagram, né? Sim, ele diz, prometido. Não postei nenhuma, relaxa.

Tem também outra foto que tirou dela sem avisar. Nunca mostrou a ela. Num amanhecer, ele a viu dormindo nua, de bruços, e viu como pequenos círculos de sol filtrados pela persiana iam subindo por seus pés. Então pôs o celular de lado, como se estivesse carregando no parapeito da janela, pôs no modo vídeo, em câmera acelerada, e saiu do quarto para não atrapalhar. O resultado, visto um tempinho depois, quando ela se levantou, foi deslumbrante. As linhas de círculos perfeitamente geométricos iam subindo por seu corpo nu.

Mulher dormindo
Num domingo ele a viu dormindo - Danny G/Unsplash

Fazia pouco tempo que Vanessa tinha se mudado para o apartamento dele em Pinheiros. Estavam bem instalados ali. Tiveram uma faxineira que ia uma vez por semana, mas como roubou dois mil dólares que Gianni tinha escondido em umas caixas de foto, Vanessa a despediu e agora estavam procurando outra. Gianni estava feliz morando com ela, enternecido com sua juventude e sua beleza constante. Ela assumia um papel meio decorativo, tomava café com um pé em cima da cadeira, abraçando a perna, mexendo no celular como se estivesse preocupada, e quando via que ele a estava olhando, sorria docemente. Não sabia nada sobre ela. Apenas o que ela tinha contado: que era filha única, que nasceu em Minas, onde viviam seus pais. Ele a conhecera em uma sessão para a Revlon; as fotos dela afinal não foram selecionadas, mas ele entrou em contato depois para um trabalho para uma linha de xampu. Saíram juntos, transaram no estúdio dele. Ela foi ficando.

Gianni não tinha família no Brasil. Nascera em Milão, trabalhou na Europa como fotógrafo durante anos. Aos 35 viajou a São Paulo para uma campanha de perfumes e desde então ficou. Primeiro na Vila Madalena, agora em Pinheiros. Isso já fazia dez anos. Quando percebiam esse lado de homem fossilizado, imperturbável, afundado em suas rotinas de trabalho, que não queria viajar (estava cansado de viajar), nem sequer ir ao cinema, que no máximo ia a um restaurante uma vez por mês, contrariado, as namoradas o deixavam em poucos meses. Ele parecia um tipo blindado. Como se vivesse em um desses estojos pretos de suas lentes e câmeras.

Obcecado por essa natureza quase infotografável de Vanessa, uma tarde, assim que ela sai, ele decide segui-la de carro para tirar fotos dela pela rua, sem ser notado. Segue o ônibus em que ela sobe. Pouco depois, a vê descer na Santa Ifigênia. Na porta de uma loja, cumprimenta um homem parecido com ela, talvez seu irmão. Gianni para o carro e tira fotos sem baixar a janela. Vanessa está com o cenho franzido, seu verdadeiro rosto revelado. Parece discutir com esse homem. Ela tira um rolo de notas do bolso. Dá ao homem. Aparece uma mulher com um menino no colo. Sacodem os braços em um diálogo cheio de fúria e repreensões. Vanessa solta toda uma bateria de gestos que Gianni nunca a tinha visto fazer. Quase não a reconhece. Tira uma última foto e vai embora.

Tradução de Livia Deorsola

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