Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Nosso estranho amor
Descrição de chapéu Relacionamentos casamento

A liberdade de não esquecer

'Preciso me livrar de uma memória de dor', ele disse à funcionária sentada atrás da mesa

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Milly Lacombe

A placa na porta dizia: entre e liberte-se das memórias de dor. Caio olhou para os lados como quem quer confirmar que não havia conhecidos por perto. Depois de se certificar que ninguém o veria entrar, colocou a mão na maçaneta e notou que a porta estava aberta. Subiu por uma escada estreita e escura e chegou numa espécie de recepção. A mulher que estava atrás de uma pequena mesa olhando seu celular levantou a cabeça e disse "como posso ajudá-lo?". Caio quis sair, mas alguma coisa o manteve ali. Ele sabia exatamente que coisa era essa: a imensa dor de ter sido deixado pelo amor de sua vida.

Rita, a mãe de seus filhos, a mulher com quem estava casado desde o final da adolescência, se apaixonou por outro e saiu de casa depois de 25 anos de união. Desde esse dia Caio não dormia, não comia, não trabalhava. Tinha virado um fiapo de homem que se arrastava pela cidade por muitas horas atravessando ruas sem olhar para os lados na esperança de que um carro o tirasse de tanto sofrimento.

Por horas falaram do relacionamento cuja recordação precisava ser apagada - Adobe Stock

"Preciso me livrar de uma memória de dor", ele disse à mulher sentada atrás da mesa. Ela entregou a ele uma folha de papel e pediu que ele preenchesse. Caio outra vez pensou em sair e outra vez ficou.

O formulário continha perguntas sobre a dor da qual ele queria se livrar. Perguntas simples que envolviam o tipo de dor e a duração dela. Caio se sentou na única cadeira encostada na parede da sala e começou a preencher. Passaram-se uns 15 minutos até que uma porta atrás da pequena mesa de madeira se abriu e por ela passou um homem alto que usava uma espécie de bata branca.

Meu nome é Rui, o homem disse pegando o papel das mãos de Caio e pedindo que ele o acompanhasse. Os dois entraram numa sala sem mesas ou cadeiras, apenas com almofadas. Rui se sentou de pernas cruzadas e indicou que Caio se acomodasse numa almofada à sua frente. Disse que antes de começar o processo que o livraria da memória de dor precisaria que Caio realizasse o pagamento. Caio não questionou: o homem parecia seguro. Aceita Pix? Rui aceitava.

Pagamento realizado, Rui explicou que precisaria fazer algumas perguntas. Caio balançou a cabeça dizendo sim. Rui olhou o papel para entender de que dor estavam falando. Então quis saber como ele e a ex-mulher se conheceram. Caio contou. Rui quis saber o que ela tinha de melhor e pediu que fosse detalhista. Não queria coisas imensas, queria detalhes, miudezas do dia-a-dia. Caio buscou memórias e falou por algum tempo. Rui quis saber quando eles foram mais felizes. Dias específicos, horas se possível, minutos se conseguisse.

Por mais de três horas falaram do relacionamento cuja recordação precisava ser apagada. "Já tenho o suficiente", Rui disse. "Vou começar o processo que vai livrá-lo das memórias de dor que envolveram esse relacionamento. Preciso apenas que você saiba que quando as memórias de dor forem embora elas levarão as memórias de alegria". Todas?, quis saber Caio. "Todas. Rita será apenas uma mulher qualquer. Mãe de seus filhos, mas não mais um grande amor ou uma grande dor. Não se espanta demônios sem mandar embora com eles os anjos", Rui disse começando a acender uma dezena de velas pelo chão. "Posso começar?", perguntou quando acendeu a última delas e se ajeitou na almofada olhando Caio de frente. Caio abaixou a cabeça e chorou com as mãos no rosto. "Posso?", insistiu Rui. Caio tirou as mãos do rosto, se levantou e foi em direção à porta. Com a mão na maçaneta olhou para trás e disse "obrigado". Em seguida, desceu a escada que o levaria de volta à rua.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.