Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
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Fogo nos olhos

Eu devia ter me dado conta e fugido, mas Natalia era muito bonita

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Pedro Mairal

Eu devia ter escapado a tempo. Mas o circo permanente da família dela me deixou fascinado logo de cara. Aquela casa com sucata acumulada pelo pai ausente no fundo do jardim. Um amontoado de chapas e fragmentos de máquinas apodrecendo na chuva. Estavam todos proibidos de tocar naquilo. Quem sabe um dia o pai voltasse e fosse precisar daquelas coisas.

Lá estava, no fundo do jardim, o santuário da sua ausência, onde crescia o mato e ratos faziam seus ninhos. No muro de trás havia uma porta, e mesmo depois de seis meses de namoro eu não tinha percebido que essa porta dava para a casa da avó, com quem, naquele tempo, estavam brigados. A avó e o tio viviam em uma fúria silenciosa. Tinha acontecido um desentendimento confuso por causa de um dinheiro. E a porta não se abria. Quando visitei a casa pela primeira vez, ali havia um cadeado oxidado, e pelo visto havia um cadeado também do outro lado.

Mulher de olhos verdes brilhantes
Adina Voicu por Pixabay

Eu devia ter me dado conta nesse momento e fugido. Mas Natalia era muito bonita, com suas maçãs do rosto de russa do Volga e ar altivo e os olhões verdes, selvagens. Por que não saí correndo quando vi aquelas fotos do álbum de família, com aqueles bisavós malucos que cruzaram o oceano, aquelas senhoras de luto com olhar de fogo, aqueles homens de expressões oblíquas, com grandes bigodes orgulhosos? O alfabeto cirílico no pé de cada imagem, um elenco digno de romance de Dostoiévski. Fiquei.

A mãe me tratava bem e atenuava seus gestos de cossaco na minha presença. Tirava o cigarro da borda dos lábios e o segurava entre a ponta dos dedos enquanto falava comigo, como que adquirindo um feitio que tentava ser finíssimo. Porque vá saber o que lhe dissera a filha sobre mim. Certamente ela tinha exagerado sobre o meu nível social.

Quando estava preparando a minha festa de aniversário, ela disse que eu tinha que convidar seu irmão. O sujeito vivia fechado no quarto e, quando aparecia, me olhava com desprezo e falava de experiências extrassensoriais. Não quis ofendê-la. Convidei o irmão. Eu estava fazendo dezenove anos. O irmão seduziu um grupo de amigos meus em um canto, falando de ovnis e contatos extraterrestres; ouvi que discutiu com alguém, bateu na mesa e foi embora transtornado. Depois, por um tempo, cada vez que o via, ele me perguntava como estavam os idiotas dos meus amigos.

Não havia problema em dormir no quarto de Natalia, só tínhamos que ser silenciosos. Talvez soubessem que isso me manteria grudado feito mosca no mel, porque ela era o mais absolutamente sexual e maravilhoso que me acontecera na vida. Sob os lençóis ela se acendia como se tivesse uma luz interna.

A avó morreu, o tio passou um tempo fora e me pediram que os ajudasse a limpar a casa. É difícil explicar o que era aquilo. Eram acumuladores, a avó e o tio. Havia jornais e revistas dos anos 1970. Pilhas de papel. A cama de casal da avó mal tinha espaço para que ela dormisse; o restante estava coberto de coisas. Não me ocorre maior bandeira vermelha de perigo que essa, me sinalizando o redemoinho familiar no qual estava me deixando capturar.

Tiramos sacos e sacos com todos os objetos do mundo. Encontrei até um crânio humano, fruto de uma tentativa falida do tio de estudar medicina nos anos 1980. Essa casa acabou sendo a nossa. Quando Natalia ficou grávida, o tio foi viver com sua irmã fumante. E agora a porta do jardim está aberta. O meu cunhado tem uma frota de carros e eu dirijo um deles. O Uber nos faz concorrência, mas não falta trabalho. Me chamam de Mysh, que é rato em russo. Eu não deveria me queixar. Me deram casa e uma vida que eu, sozinho, não poderia ter arranjado nunca. O meu filho se chama Ivan e tem fogo nos olhos.

Tradução de Livia Deorsola

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