Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
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Bob e os passarinhos

Sentir é uma forma tão legítima de compreender quanto pensar

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Milly Lacombe

Inês se mudou para uma chácara no interior do Rio de Janeiro. Aos 67 anos, aposentada, queria uma vida mais simples longe da bagunça de Copacabana. Um jardim, uma horta, tempo para olhar para o céu, tricotar, ler, cozinhar. Estava acostumada com uma existência solitária, tinha poucos amigos e a verdade era que os dois melhores entre eles não escaparam à pandemia. Desde a morte de Bia e de João, Inês se recolheu e ficou ainda mais introvertida.

O irmão recomendou que ela adotasse um cachorro para morar com ela no interior, mas Inês era dos gatos. Tinha dois e não gostaria de estressá-los com a chegada de um animal de outra espécie. Disse que não adotaria, que ficaria bem com seus gatos morando sozinha no meio do mato.

Menos de um mês depois da mudança, o irmão apareceu para visitar levando um cachorro na bagagem. Seu nome era Bob: um vira-lata de porte médio, muito branco, muito alegre e carinhoso. Inês não recusou. Depois de algumas semanas na chácara, entendeu que ter um animal que latisse e a alertasse sobre movimentos estranhos poderia ser bom negócio.

Cachorro no colo de sua tutora
Helena Sushitskaya por Pixabay

Mas ela rapidamente percebeu que esse cachorro não seria Bob, que latia para tudo e todos sem distinção. Bob latia especialmente para os passarinhos. Bastava ver um, que saía em disparada olhando para os céus e latindo desesperado. Ele detestava os pássaros? Sentia raiva? Inveja? O que ele tinha contra bichos que voavam pelos céus?

Numa tarde qualquer, sentada na varanda tomando uma xícara de chá, ficou observando o comportamento de Bob correndo em vão atrás dos pássaros. Ele jamais os alcançaria, pobre Bob. Sua corrida era uma corrida que já começava fracassada. Os passarinhos sumiam rapidamente de sua vista, Bob não levava a menor chance nessa disputa ainda que jamais desistisse.

A vida entrou em um ritmo confortável, Inês se ambientou à casa e à cidade, e observar Bob correr atrás dos passarinhos deixou de ser intrigante.

Até que numa tarde de outono, tendo acabado de ler um livro, ela foi se sentar na varanda e notou Bob em seu ritual. Inês, talvez comovida com o final do livro, talvez embalada pela música que tocava na caixinha de som, entendeu tudo.

Bob não sentia raiva ou inveja dos passarinhos. Bob era tão livre correndo e latindo quanto aqueles pássaros batendo asas e voando pelos céus. Bob corria e latia para os passarinhos como se quisesse homenagear a existência deles. Estou vendo vocês, reconheço vocês, vocês existem pra mim.

O sentido da corrida era a corrida. Não havia objetivo, não havia intenção ou ponto de chegada.

Claro que Inês sabia estar projetando em Bob o que ela mesma estava vendo, mas aquela ideia parecia bastante provável. Cachorros não pensam, mas sentem. E sentir é uma forma tão legítima de compreender quanto pensar.

Inês chamou Bob para perto dela e o abraçou. Bob colocou a cabeça em seu ombro e se recostou. Ficaram assim por alguns minutos até que uma revoada de maritacas cruzou suas cabeças e Bob saiu latindo.

Inês entendeu que sentia falta dos amigos e que, ainda que João e Bia não pudessem mais visitá-la, talvez devesse chamar outros para passar um fim de semana com ela. Conversar, beber, dançar, falar da vida, rir da vida, lembrar dos que partiram talvez a fizesse se sentir tão livre quanto Bob correndo ou as maritacas voando.

Como estava quase escuro, chamou Bob para dentro de casa, pegou o celular e começou a escrever para alguns amigos convidando-os para passar um fim de semana com ela, com Bob e com os gatos em sua nova vida.

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