Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
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No terceiro dia

Agora ela sentia que tinha ficado presa na fronteira, no meio, sem estar em lado nenhum

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Pedro Mairal

Se salvou por um milagre, diziam. Na UTI do andar térreo, o paciente ferido a bala estava inconsciente. Era vigiado por um policial na porta e o tinham algemado à barra de proteção lateral da cama. A dra. Souza estava acompanhando sua evolução desde que ele chegou, com grande perda de sangue, uns dias antes. Notou o alvoroço silencioso das enfermeiras no pós-operatório e até a frequência inusual com que a jovem freira beneditina entrava na UTI para rezar por ele junto à cama.

Certa manhã a surpreendeu rezando, aproximou-se devagar e viu que a freira estava quase roçando a ponta dos dedos no braço do paciente. Quando a freira abriu os olhos, sobressaltou-se. O Senhor se manifesta de maneiras insuspeitas, disse, e com o olhar convidou a médica a contemplar a enorme tatuagem de crucifixo que o rapaz tinha no peito. Parecia uma tatuagem feita na prisão, com tinta preta e traços duvidosos. O lençol ficara enrolado, cobrindo-lhe a virilha e, assim, amarrado à cama, ele emanava algo crístico, quase sobrenatural.

Paciente deitado numa maca com acesso na mão
Engin Akyurt por Pixabay

O policial da porta perguntou quando a médica achava que ele ia despertar, e a dra. Souza exagerou. Uma recuperação como esta demora muito, ela disse, ele não precisa ficar assim, amarrado. É perigoso, disse o policial. A médica trocou algumas palavras com a chefe da enfermagem e saiu. Já era meio-dia. Procurou o carro no estacionamento do hospital e foi embora para casa, dirigindo. Saiu da rodovia, passou pela cancela de segurança, pelos muros perimetrais e entrou em seu éden privado, seu jardim verde, sua casa com piscina.

O marido a esperava com uma grande salada de endívias. Enquanto almoçavam, ele lhe sugeriu que fossem para a cama e que ela se atrasasse um pouco para ir à clínica onde trabalhava na parte da tarde. Mas ela não quis, disse que o turno da manhã no hospital tinha sido muito pesado. Por que você insiste nesse hospital público?, te pagam mal e você fica exausta. Não vou ter esta conversa de novo, disse ela, e não quis nem olhar para o marido. Porque o viu de um modo que ele não podia nem sequer desconfiar. Tão rosado, tão frágil, tão indefeso e perfumado, com suas calças cáqui pregueadas e seus óculos e sua carteira e seu iPhone e seus sapatos Hush Puppies que ela mesma havia dado de presente. Viu-o tão distante do pistoleiro baleado pela polícia, tão distante desse tipo fibroso, calejado, mestiço de mil mestiçagens, endurecido no cimento da mais dura crueldade do mundo, imortal, crucificado, temível. Não disse nada.

No que estava pensando a dra. Souza quando se levantou da mesa, quando se trocou e partiu para o consultório da clínica particular? O que foi que girava em sua cabeça e a distraía em plena conversa com os pacientes, que contavam sobre viagens e cirurgias programadas? Sempre tinha conseguido compaginar bem esses dois mundos distantes: de manhã, os pacientes com feridas de bala, cortes de brigas a faca, pancadas dadas por um bêbado mau; à tarde, os acidentados de equitação, kitesurf, hóquei. Agora sentia que tinha ficado presa na fronteira, no meio, sem estar em lado nenhum. O plano foi ficando claro em sua mente e à noite já tinha se decidido. A barra de proteção da cama hospitalar podia ser desparafusada, e ela sabia como. E podia deixar roupas masculinas escondidas entre os lençóis, e a janela podia já estar entreaberta, e o policial podia, quem sabe, se dar conta tarde demais de que a cama tinha ficado vazia.

Tradução de Livia Deorsola

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