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Leandro Beguoci é diretor editorial de Nova Escola (novaescola.org.br). Ele explica sobre o que funciona (e o que não funciona) na educação brasileira.

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O MEC usa e ataca a ciência ao mesmo tempo

Política de alfabetização é uma das raras áreas do governo que elogia estudos e evidências

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A relação do governo de Jair Bolsonaro (PSL) com a ciência é clara e transparente. Sempre que ela vai contra as ideias do governo, é descartada, atacada e menosprezada. Foi assim com os dados de desmatamento, por exemplo. É um governo que leva a sério as ideias de Olavo de Carvalho, ideólogo oficial. 

Diz o filósofo, em texto de 2009: “a 'ciência' não pode jamais ser a autoridade última em nenhum assunto exceto dentro dos limites que a razão lhe prescreva, limites estes que por sua vez continuam sujeitos à crítica racional a qualquer momento e em qualquer circunstância do processo científica”.

Estante de livros na biblioteca Biblioteca Cassiano Ricardo, no Tatuapé, em São Paulo
Estante de livros na biblioteca Biblioteca Cassiano Ricardo, no Tatuapé, em São Paulo - Alberto Rocha/Folhapress

E continua: “A experiência humana tomada como totalidade ilimitada é a mais básica das realidades, ao passo que o objeto de cada ciência é uma construção hipotética erigida dentro de um recorte mais ou menos convencional dessa totalidade. Essa construção nada vale se amputada do fundo desde o qual se constituiu. O apego à autoridade da 'ciência', tal como hoje se vê na maior parte dos debates públicos, não é senão a busca de uma proteção fetichista, socialmente aprovada, contra as responsabilidades do uso da razão”. 

A ciência não é vista como uma investigação objetiva sobre a realidade, mas apenas como uma ferramenta auxiliar, sem valor absoluto em si. Nessa leitura, a ciência está submetida a uma certa compreensão de mundo. E quem define o que é certo? Olavo não diz no texto de 2009, mas deixou muitas pistas ao longo dos últimos meses, ao menos na relação entre ciência e governo.

Bolsonaro é retratado por Olavo como o intérprete preciso da voz do povo. Ele saberia, por instinto e formação, o que é a realidade produzida pelas pessoas comuns. Por dedução, se a ciência não diz o que Bolsonaro vê, logo a ciência está errada. O presidente da República passa a ser não somente o líder político do país mas alguém capaz de produzir a realidade como seu mais fiel tradutor. É outra gramática política, bem distante da praticada pelas democracias ocidentais desde a Segunda Guerra.  

A relativização científica de Olavo não é nova nem está apartada de um debate maior —mas isso é assunto para outra coluna, em outro momento. O fato é que o governo não vem atacando a ciência apenas com palavras, mas com atos. 

O MEC cortou financiamento para pesquisas ao longo de 2019 e deve afiar a tesoura para 2020. A área de pesquisas do ministério deve perder metade do seu orçamento para o próximo ano. O discurso anticientífico não é apenas papo de redes sociais. É política pública. O governo não apenas ataca os especialistas: tira dinheiro deles. 

Por isso soa tão estranha a política nacional de alfabetização proposta pelo governo Bolsonaro. O ministro da Educação, Abraham Weintraub, declarou que o objetivo é apenas colocar ciência nas medidas fomentadas pela pasta. Em todas as comunicações oficiais do MEC, o discurso é calcado na defesa das evidências e dos estudos internacionais.

Na letra do texto, tudo muito bom. Porém, basta meia hora de redes sociais para perceber que a ciência está sendo usada para atacar adversários de sempre de Bolsonaro e Weintraub —de Paulo Freire a professores construtivistas.

Política também é construção de confiança. Além de oferecer dinheiro, o governo precisa provar que está disposto a seguir as evidências mesmo quando elas vão contra as suas convicções. Se os estudos de alfabetização se opuserem em algum momento ao governo, ele estará disposto a repetir a frase célebre do economista John Maynard Keynes? Certa vez, quando foi ironizado por mudar de ideia, Keynes disse: “quando os fatos mudam, eu mudo minha opinião. E o senhor, o que faz?”

Essa é a pergunta que todo especialista em alfabetização disposto a colaborar com o MEC deveria fazer neste momento ao governo: “E o senhor, o que faz?” Se o MEC não estiver disposto a mudar de ideia, ele vai provar que a ciência vive apenas no discurso —e enquanto for útil aos objetivos do intérprete último da nação...

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