Pablo Acosta

Economista líder de Desenvolvimento Humano para o Brasil do Banco Mundial e doutor em Economia pela Universidade de Illinois (EUA)

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Que vantagem Maria leva?

O paradoxo de gênero no capital humano

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Ir à escola, aprender com qualidade, garantir uma boa saúde na infância e vida adulta são elementos que fabricam o potencial produtivo de um indivíduo. O ICH (Índice de Capital Humano) procura materializar essa ideia, por meio de um único número que mede a produtividade futura. Mas, e depois? Em que local é realizado este potencial produtivo? No mercado de trabalho. É neste lugar que o capital acumulado por um indivíduo é utilizado. Em outras palavras, é o trabalho que permite que o potencial produtivo se transforme em efetivo. Neste salto do potencial para o efetivo, da acumulação para a utilização, um grupo essencial da população é deixado para trás: as mulheres.

O Relatório de Capital Humano para o Brasil do Banco Mundial mostra que as mulheres desenvolvem 60% do seu potencial produtivo, medido pelo ICH. Os homens, por outro lado, alcançam apenas 53% do seu capital humano. As mulheres têm mais anos de estudo, possuem menor taxa de abandono e repetência escolar. Enquanto 26% das alunas chegam ao ensino médio com distorção idade-série, este percentual para alunos homens é de 36%. Ainda, em 2017, as notas da avaliação nacional (Saeb) mostraram que os meninos têm melhor desempenho que as meninas em matemática, mas em português a vantagem é do sexo feminino. Esta mesma análise não foi possível em 2019 —última edição do Saeb divulgada— devido à ausência inusitada da desagregação por sexo nos resultados.

Se a diferença de gênero é ambígua em termos de aprendizado nas disciplinas básicas, nos indicadores de saúde é bastante clara.

 Mulheres paquistanesas protestam contra a violência em ambientes de trabalho, em Lahore, no Paquistão
Mulheres paquistanesas protestam contra a violência em ambientes de trabalho, em Lahore, no Paquistão - EFE

O Relatório de Capital Humano para o Brasil mostra que, enquanto uma brasileira de 15 anos de idade tem, em média, 91% de probabilidade de sobreviver até os 60 anos de idade, a chance de um homem da mesma idade de sobreviver na idade adulta é de 82%. Mortes por eventos externos, como homicídios e acidentes —mais prevalentes entre o sexo masculino— explicam este resultado. A vantagem comparativa das mulheres em saúde se soma à dianteira em educação e, juntas, produzem um único resultado: um Índice de Capital Humano 13% maior para mulheres do que o dos homens.

Contudo —usando uma expressão popular—, que vantagem Maria leva em acumular este capital humano? Maria, aqui, é representante de todas as mulheres brasileiras e possui "uma força que nos alerta" —como diria Milton Nascimento. Dados da Pnad do último trimestre de 2019 mostram que enquanto 67% dos homens maiores de 14 anos estavam ocupados no mercado de trabalho, apenas 47% das mulheres estavam na mesma condição. No Norte, a diferença é ainda maior: enquanto também 67% dos homens estavam ocupados em trabalhos formais ou informais, apenas 42% das mulheres exerciam funções remuneradas. A diferença no nível de ocupação é apenas a primeira, de muitas, desigualdades no mercado de trabalho. Salários mais baixos, dupla jornada, assédios sexuais são alguns de tantos outros entraves que as mulheres encontram em sua caminhada fatigante. O troféu das mulheres conquistado durante a acumulação de capital humano se desintegra no mercado de trabalho.

O Relatório de Capital Humano se debruça sobre esse fenômeno e pergunta: "Quanto do capital humano acumulado é, de fato, utilizado?". Neste momento, o ICH conquista mais uma letra e se transforma no ICHU: Índice de Capital Humano Utilizado. É neste mesmo instante que avistamos o paradoxo de gênero. Enquanto homens, que estavam na retaguarda, acumulam e empregam 40% do seu capital humano, as mulheres reúnem e utilizam apenas 32%. Isto significa que quase metade do capital humano das mulheres é extraviado na porta do mercado de trabalho. Para os homens, esta perda é de aproximadamente um quarto. As mulheres afrodescendentes são ainda mais penalizadas e acabam acumulando e utilizando apenas 29% da sua produtividade potencial. Elas são duplamente reprimidas pela sociedade: pela raça e pelo gênero.

O ICHU nos faz refletir sobre dois grandes obstáculos que as mulheres enfrentam na entrada do mercado de trabalho. O primeiro, e talvez, mais abstrato, são os fatores culturais. Dados do World Value Survey mostram que 22% dos brasileiros acreditam que homens são melhores executivos de negócios do que as mulheres. Em países como os Países Baixos ou Nova Zelândia, este percentual é de cerca de 6%. Estamos a mil léguas de uma sociedade que acredita no potencial produtivo das mulheres. O segundo obstáculo, e mais concreto, são as tarefas domésticas e o cuidado com os filhos. Dados do IBGE mostram que as mulheres dedicam 10,4 horas por semana a mais que os homens aos afazeres domésticos e ao cuidado de pessoas, incluindo filhos. Esta diferença —que representa um quinto de uma jornada usual de trabalho— tem crescido ao longo de anos.

Políticas públicas são e, devem ser, capazes de alavancar a utilização do capital humano feminino. A literatura acadêmica demonstra, por exemplo, que a adequada cobertura de creches e pré-escolas tem impacto positivo sobre a participação das mulheres no mercado de trabalho. O ICHU além de uma estatística, é, sobretudo, um convite para que possamos pensar e debater políticas que promovam a equidade de gênero.

Esta coluna foi escrita em colaboração com Giovanna Quintão, profissional júnior associado.

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