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Julio Wiziack é editor do Painel S.A. e está na Folha desde 2007, cobrindo bastidores de economia e negócios. Foi repórter especial e venceu os prêmios Esso e Embratel, em 2012

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Presidente da Alpargatas, dona da Havaianas, diz que empresa sai mais forte após inflação

Roberto Funari afirma que alta nos preços é um ponto de atenção

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São Paulo

Fundada há 114 anos como uma fabricante de lona de caminhão, a Alpargatas acumulou muita história antes de criar, em 1962, as Havaianas, que a projetaram mundialmente.

A trajetória de internacionalização da empresa teve episódios inusitados, como o caso de uma coleção de chinelos criada especialmente para a Copa de 1998, que encalhou quando o Brasil perdeu a final. Sem demanda por aqui, o estoque foi enviado para a Europa, onde se esgotou em pouco tempo e acabou virando uma linha de produtos permanente.

Para o futuro, o horizonte é a aceleração digital e a expansão de mercados como a China, mas a Alpargatas também vê potencial de ser uma empresa de marcas globais, para além das duas bandeiras, Osklen e Havaianas, em que resolveu concentrar o foco atualmente, segundo Roberto Funari, presidente da empresa.

A curto prazo, inflação é um ponto de atenção, mas a característica intangível da marca, que lhe dá capacidade de criar modelos de inovação com valores mais altos, ajuda a atravessar, segundo o executivo. “Hoje, temos uma área dedicada ao gerenciamento de receita, que é a melhor forma de maximizar as receitas por par. Temos essa capacidade por ser uma marca, e não uma commodity.”

Roberto Funari, presidente da Alpargatas - Ronny Santos/Folhapress


Como foi essa história? A Alpargatas foi fundada em 1907. Seis anos depois, virou empresa listada. Hoje, é a mais antiga na Bolsa de Valores. Foi também a primeira a contratar mulheres na linha de produção, nos anos 1920, a primeira a patrocinar a transmissão de uma Copa pelo rádio, em 1958. Em 1962, cria a Havaianas.

A Alpargatas começa fazendo lona de caminhão com a marca Locomotiva. Virou empresa têxtil e de calçados, passou a ter várias marcas, próprias, como Rainha, Bamba, Kichute, e a ser representante de marcas globais no Brasil.

Na década de 1980, a Havaianas foi parte da cesta básica do brasileiro. Era arroz, feijão, leite e Havaianas, portanto, preços controlados. Foi um desafio em um cenário de inflação e hiperinflação.

Na democratização, era um chinelo que tinha um estigma social, do pedreiro, da doméstica. E, com o processo de inclusão social em que o Brasil entrou, a Havaianas capturou bem esse momento e lançou a campanha Todo Mundo Usa.

Nessa fase, tinha o modelo tradicional, com a sola branca em cima e a cor embaixo. Nos anos 1990, os surfistas do Arpoador (Rio) invertem a sola e usam a Havaianas colorida. A empresa viu a oportunidade e lançou a versão com cor. Virou marca ícone e ajudou a virar acessório de moda.

A Alpargatas passou por dois controladores que tiveram crises de reputação: a Camargo Corrêa, que ficou manchada pela Lava Jato, e a J&F dos irmãos Batista, que também tiveram o caso da delação. Até ser vendida para Cambuhy e Itaúsa. Como a Alpargatas, que tem essa relação com imagem e marca, atravessou os dois períodos? Eu não estava na companhia, mas acho que o grande mérito vem dos gestores da época, que fizeram um trabalho bom de blindagem. A empresa se preservou desses desafios ligados aos controladores da época. Com a entrada dos novos, com esse novo padrão de governança, o que vimos é que a reputação não havia sido afetada.

A empresa tem uma reputação que só vem crescendo. Na pandemia, fizemos um trabalho de compromisso com a sociedade, não demitir, doações, produção de máscaras. Acho que isso fez crescer a reputação.

Como foi a história do reconhecimento internacional? Em 1998, a Havaianas fez uma coleção da Copa. Foi uma produção grande, se esperava que o país ganhasse. Só que a seleção perdeu, e o produto ficou encalhado. Aí o gestor da empresa na Europa pediu para mandar para lá. Vendeu tudo imediatamente. Hoje, a nossa maior franquia é a Havaianas Brasil e vende muito mais fora do que aqui. Foi um marco importante na internacionalização.

No início dos anos 2000, os artistas do Oscar usaram Havaianas. A marca navegou nessa tendência do high-low, de autenticidade, de ser popular, mas pode ser usada como acessório de moda. Paparazzi pegaram momentos de celebridades usando Havaianas, e a marca ganha com isso.

Como foi na pandemia? O setor de calçados global caiu 20% na pandemia. No Brasil, 22%. E a Havaianas cresceu 6%, se descolou. Virou o calçado do ficar em casa. Estamos crescendo bastante na onda do casual com conforto.

Depois da vacina, isso vai passar? Tem três grandes tendências, e a Havaianas está bem posicionada nelas. Uma é a onda de casual com conforto. A segunda é a migração para as experiências online. E a terceira é a do consumidor consciente e responsável.

Estamos acelerando nossas vendas em canais digitais e expandindo o portfólio além de chinelo, entrando em categorias de lifestyle e acessório.

E estamos trazendo mais materiais sustentáveis, reciclagem de resíduos de borracha de fábrica. Estamos lançando economia circular no Brasil, na Europa e nos EUA. E temos cada vez mais apoiado causas sociais.

Vocês estão com medo da inflação? Somos uma marca, e marca tem valor intangível. Temos uma capacidade de criar modelos de inovações com valores mais altos, temos uma capacidade de acompanhar a inflação com alta de preços.

Hoje, temos uma área dedicada ao gerenciamento de receita que é a melhor forma de maximizar as receitas por par, sem perder a dimensão universal dos preços da marca. Temos essa capacidade por ser uma marca, e não uma commodity. E podemos usar a nossa alavancagem operacional para ser mais eficiente e minimizar o impacto da inflação nos custos.

Na marca Havaianas, por exemplo, vendemos mais do que 30% no internacional. Isso faz com que não fiquemos só dependentes do mercado brasileiro. E a inflação na área de consumo tem um fator de voltar ao patamar normal após um ciclo. A experiência que temos é que são ciclos, e o importante é ter uma marca resiliente para passar por eles e retornar ao normal.

Preocupa a curto prazo, porque tem de fazer mudanças, sejam comerciais, sejam de ganhos de eficiência. Mas, a médio e longo prazo, acreditamos que a empresa saia mais forte.

Como vocês estão se preparando para a crise energética? Do ponto de vista de uso de energia, estamos em uma categoria média de utilização. Já temos acesso a algumas fontes de energia que nos ajudam a ter diversificação. E, onde nós operamos, o grande desafio vai ser mais uma questão de preços.

Qual é o papel da China agora na sua expansão internacional? A globalização é muito centrada em marca. Não em exportação. Não estamos fazendo comércio. Estamos criando a marca. Por isso é importante atuarmos diretamente nos países, com times comerciais e de marketing, cadeias de suprimentos, para ter níveis de serviço e uma organização orientada ao usuário.

A relação do governo Bolsonaro com a China os preocupa? É uma área de atenção. Somos uma empresa de 114 anos. Passamos por vários governos e situações. O que aprendemos ao longo dos anos, e principalmente nos últimos 23 anos que a globalização da marca se acelerou, é que, independentemente do governo, a marca representa um Brasil muito aspiracional.

Monitoramos de perto essa percepção da imagem. A marca se dissocia. Ela representa um Brasil do ponto de vista emocional que é a essência da alma brasileira.

Temos investido e reforçado nossas credenciais de governança, transparência. A indústria de moda é muito desafiada nos quesitos de sustentabilidade no aspecto social. A maioria das empresas terceiriza e quarteiriza sua produção. Nós não. Nós produzimos nas nossas fábricas, empregamos 12 mil colaboradores. Temos impacto social.

Isso vale também para a deterioração da imagem ambiental do Brasil lá fora? No nosso caso, sim. E acho que tem uma consciência de que existe um contraponto, quando se olham as questões envolvendo um país. E temos o desafio da crise sanitária que estamos vivendo no Brasil, mas, dentro disso, tem também os casos de apoio que são bem avaliados lá fora. O Brasil tem uma cara boa para mostrar.

Vocês anunciaram uma aquisição de uma empresa de tecnologia no mês passado. Tem mais pela frente? A nossa visão de Alpargatas é construir uma empresa global de marcas ícones hiperconectadas.

Acreditamos que a companhia faz isso muito bem com Havaianas e que podemos ser um grande dono de marcas ícones. Desde que os novos controladores entraram na Alpargatas, primeiro, vendemos todos os negócios que não estavam conectados com essa visão.

Hoje, nos concentramos em duas marcas ícones, Havaianas e Osklen. Nos próximos passos, primeiro é expandir e potencializar o crescimento das nossas marcas. É muito importante a aceleração digital.

Estamos olhando, por exemplo, para adquirir empresas que tragam essa capacidade de potencializar esse crescimento. Por isso a aquisição da Ioasys, que é uma empresa de soluções digitais.

E também continuamos olhando, isso acontece ao longo do tempo, empresas e marcas que podem fazer sentido no nosso portfólio. Nossa orientação é de longo prazo. Acreditamos que o crescimento orgânico é prioridade, mas vemos potencial de ser uma empresa de marcas globais com esse perfil.

Na pandemia, além de vocês contarem com o online, o produto se beneficiou por estar nos supermercados, considerados essenciais. Mas outros negócios sofreram e estão começando a conversar sobre pedir indenização aos governos porque foram obrigados a fechar. Vocês tiveram as duas experiências, porque também têm loja em shoppings. Como vocês avaliam tudo isso? E temos também a rede de franquias, que são empresários com capacidade limitada para lidar com ciclo longo de restrições como este. Nosso foco foi apoiar esse ecossistema. Nosso grande critério foi só tomar medidas que tomaríamos em situação normal.

Falam muito nas questões de restrição que diminuiu o fluxo de shopping, mas, se esse é o shopping certo para termos loja e o nosso usuário quer comprar nesse shopping, temos que seguir o que o nosso usuário quer. Então, não vamos fechar só para proteger o lucro de curto prazo. Usamos muito essa filosofia.

Com demissões, foi a mesma coisa. Decidimos não demitir, porque depois, para recontratar, tem uma perda, geralmente não calculada, que é a curva de aprendizado nas máquinas ou de um vendedor em uma loja. Então, a gente procurou preservar com essa visão de longo prazo. Agora, respeito muito o pequeno empresário ou médio, que tem menos recursos ou suporte de infraestrutura. Eu acho que ele tem o direito de procurar alternativas para a sua sobrevivência.


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