No jogo do processo democrático, cabe ao Estado perceber as necessidades da sociedade e, a partir delas, criar soluções sustentáveis. Quando essa sintonia não se dá de forma fluida e automática, cabe à sociedade se organizar para sinalizar os problemas e apontar direções para resolvê-los.
Foi exatamente assim que médicos, advogados, pacientes e familiares conquistaram o direito ao tratamento com a cânabis medicinal no Brasil. E, hoje, lutam por uma legislação que garanta esse direito a todos os brasileiros, independentemente da situação financeira de cada um e do preconceito originado na demonização secular da planta.
Vale lembrar que estamos falando de uma jornada longa, que teve a primeira vitória em 2014, quando centenas de mães desesperadas tornaram públicos os sentimentos de dor e agonia provenientes da negação do Estado em autorizar a única terapia eficaz para aliviar o sofrimento de seus filhos.
Nesse ano foi concedida a primeira autorização oficial de importação do canabidiol para uso medicinal a Anny Fischer, 6, portadora de síndrome rara genética, que provocava 80 convulsões por semana. A história de resiliência da família Fischer e de tantas outras chegaram a render, na época, o documentário "Ilegal".
A decisão então inédita abriu a porta para a construção de um mercado, regulado pela Anvisa - Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que atualmente possui pelo menos 20 extratos de CBD —canabidiol, substância derivada da cânabis, sem efeito psicoativo— autorizados a serem vendidos em farmácias brasileiras, e aproximadamente 300 mil pacientes em tratamento.
Também foi em 2014 que o Conselho Federal de Medicinal (CFM) editou a primeira orientação específica para o tratamento canábico. Ela restringia —e ainda restringe— a administração aos casos de epilepsia infantil refratária por neurologistas e psiquiatras. Na época, a substância era considerada experimental.
Nos últimos oito anos, as pesquisas avançaram e comprovaram outras aplicações do tratamento, como dor crônica do câncer, fibromialgia e depressão.
Por isso, o mercado já cobrava insistentemente a atualização da norma de 2014. Demorou oito anos para que o CFM respondesse com a publicação de uma nova regulação, mas sem qualquer avanço, que refletisse a evolução da medicina canábica.
A sociedade civil rapidamente se manifestou de modo contundente contra o retrocesso do CFM.
Juristas e advogados formaram a Coalizão Advocacia da Medicina, grupo com 229 profissionais atuantes na área, para publicar uma carta de repúdio. A Sociedade Brasileira de Estudo da Cannabis Sativa elaborou abaixo-assinado que alcançou 170 mil assinaturas em dois dias. Enquanto isso, no Congresso, o deputado Paulo Teixeira (PT-SP) entrou com pedido de cassação da determinação do CFM.
Dez dias depois, a pressão social levou à revogação da decisão, trazendo de volta a regulação de 2014. Neste mês, a entidade abriu consulta pública sobre o tema, aberta a médicos e a sociedade em geral.
As leis não devem ser criadas para impedir o desenvolvimento e o bem-estar da população. Elas precisam ser orgânicas para facilitar a implantação de mudanças sociais, alavancadas principalmente pelos avanços da pesquisa e da ciência.
Recentemente vimos a vacina da Covid-19 ser desenvolvida, fabricada e distribuída globalmente em menos de um ano. No mundo, essa agilidade se deu pelo trabalho conjunto de laboratório e dos governos. No Brasil, especificamente, a vacina salvou vidas porque foi viabilizada pelo Sistema Único de Saúde. Vimos pobres e ricos na mesma fila para receber o imunizante.
O período pandêmico também revelou o caráter idiossincrático do Conselho Federal de Medicinal. No auge da contaminação, discutiam-se as possibilidades de tratamento dos sintomas da infecção, entre elas, a polêmica cloroquina, sustentada pelo atual governo e classificada como ineficaz pela Organização Mundial de Saúde.
Neste embate, o CFM defendeu a liberdade do médico na escolha do melhor tratamento para seu paciente—posição inversa à adotada em relação à cânabis medicinal recentemente.
Para que nenhum paciente fique à revelia dos humores e preconceitos que envolvem o tema, é imperativo que o país volte a discutir a necessidade de uma lei de fato, que também proporcione o acesso democrático à cânabis medicinal, como fez com a vacina recentemente.
Aliás, um novo estudo brasileiro apontou que 58 mil pessoas, com mais de 60 anos, não morreram justamente porque receberam o imunizante. Mas esse grupo poderia ter 47 mil pessoas a mais, caso a campanha vacinal não tivesse sido politizada e ganhado ritmo intenso desde o começo.
Está mais do que na hora de desengavetar o PL 399/2015, que regula o uso medicinal e industrial do cânhamo, espécie de cânabis sem o efeito psicotrópico da planta usada para a fabricação da maconha.
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