Pacientes rejeitam abrir mão de canabidiol, alvo do CFM, por 'questão de sobrevivência'

Adultos e crianças recorrem à Cannabis medicinal para tratar dores, depressão e crises convulsivas

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São Paulo

Em 2012, o carro em que estava Tabata Tatiane Gomes Ferreira, hoje com 41 anos, capotou na rodovia Ayrton Senna, em Mogi das Cruzes, região metropolitana de São Paulo. O acidente provocou uma grave lesão em sua cervical, além de fraturas na face e no fêmur, e resultou em um quadro de tetraplegia incompleta.

Tabata ficou um longo período na cama e passou por diversas cirurgias, três delas no pescoço. Fez sessões de fisioterapia e conseguiu deixar a cadeira de rodas. Hoje, quase não precisa mais de muletas. Mas sofre com dores crônicas e espasticidade (tensão e rigidez dos músculos), além de insônia, depressão e ansiedade, condições que ela trata com canabidiol (CBD), uma das substâncias presentes na Cannabis.

"Hoje, levo uma vida praticamente independente. Tenho ainda limitações físicas, então tenho certa dificuldade de caminhar, de subir escadas, mas já faço tudo sozinha", diz ela, que é música. "O canabidiol me ajuda demais. Ajuda no relaxamento muscular, a espasticidade quase zerou. Principalmente no frio, quando os músculos começam a enrijecer, eu posso cair facilmente se estiver andando na rua e a temperatura for desconfortável para mim."

Tabata Ferreira em sua casa no Jardim Clélia, em São Paulo; após um acidente que causou múltiplas lesões e provocou um quadro de tetraplegia incompleta, ela usa canabidiol para tratar dores, insônia e ansiedade - Bruno Santos/Folhapress

Ela começou a usar CBD em 2016. Além dos benefícios relatados, Tabata diz desde o início não respondeu bem a medicamentos convencionais, que atacam principalmente seu sistema digestivo. "Não consigo me alimentar muito bem, estou sempre muito abaixo do peso. O tratamento ajuda a abrir um pouco mais o apetite", afirma ela, que consome também Cannabis in natura.

Embora a nova resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina) sobre canabidiol restrinja ainda mais a prescrição de CBD no país, Tabata, que não é contemplada pelas regras do novo texto, afirma que não tem outra opção que não seja seguir seu tratamento.

"Não posso abrir mão da qualidade de vida que adquiri", afirma ela. "Estou muito bem nesses últimos meses, sem dores. Se a Cannabis é o que me dá essa garantia de qualidade de vida, eu estou fechada com a Cannabis até o fim. É instinto de sobrevivência."

Mesmo posicionamento tem Élina Monteiro, 40, mãe de Hugo, de 5 anos, que desde os seis meses de idade sofre com crises convulsivas provocadas pela polimicrogiria, uma malformação do córtex cerebral. A criança, que já chegou a ter 80 convulsões em um dia, faz tratamento com canabidiol desde 2019 e hoje passa dias sem crise.

Recentemente, porém, após uma tentativa de retirar o CBD para mudar o tratamento, por sugestão profissional, o filho de Élina chegou a ficar oito dias em uma UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Foram 23 dias de crises convulsivas "incontáveis" até a internação, diz a mãe.

"Foi a pior fase da nossa vida, o menino agonizava. Até a gente acordar para a realidade de que era o [desmame do] canabidiol, o Hugo já estava na UTI. Chegou praticamente morto de tanta crise convulsiva. Hoje, ele tem uma encefalopatia grave que é consequência disso", afirma a mãe. "Gradativamente fomos retomando o canabidiol, ainda no hospital. Logo a resposta veio, e tem 40 dias que estamos de volta em casa."

Moradora de Varginha, em Minas Gerais, ela diz que no início resistiu a aceitar o tratamento com CBD. "Tentamos de tudo, e nada funcionava. Quando o médico falou em canabidiol, que era a última saída, eu chorei. Chorei porque dentro de mim havia um preconceito. Na minha cabeça tão pequena, de tão pouco conhecimento naquele momento, eu pensava: 'meu filho vai usar maconha?'. Até eu admitir foram dois meses. Não via o canabidiol como forma de tratamento medicinal, para mim era uma droga", lembra.

Tentamos de tudo, e nada funcionava. Quando o médico falou em canabidiol, que era a última saída, eu chorei. Dentro de mim havia um preconceito. Pensava: 'meu filho vai usar maconha?'

Élina Monteiro

Mãe de Hugo, 5, que tem polimicrogiria

"Depois de quase perder meu filho, eu sei que o retorno do tratamento com canabidiol foi essencial para a vida do Hugo. Meu filho é, sim, dependente do canabidiol."

Pela nova resolução do CFM, que restringe a prescrição de canabidiol ao tratamento de crianças e adolescentes com epilepsias refratárias às terapias convencionais para as síndromes de Dravet e Lennox-Gastaut e para o complexo de esclerose tuberosa, os médicos não podem receitar CBD para garotos como Hugo. Nem para meninas como Letícia, de 15 anos, diagnosticada com síndrome de West, condição rara que provoca crises severas de epilepsia.

Mãe de Letícia, a psicopedagoga Claudia Onofre, 53, afirma que a filha usa canabidiol há cinco anos. Ela diz que ficou bastante assustada quando soube da nova resolução do CFM.

"Ela chegou a ter 70 crises por dia. As crises mexem com a coordenação motora e a tiram de órbita, ela fica ausente, não se conecta com o nosso mundo. Costumo dizer que é aquele olhar que te olha e te atravessa, não te vê", diz. "A falta do medicamento pode levá-la a crises fortes e recorrentes, e dói dizer isso, mas ela pode vir a óbito."

"O cognitivo dela é extremamente comprometido. É uma mocinha de 15 anos, mas mentalmente um bebê doce e carinhoso. Com o canabidiol, melhorou muito. Se ela tem sede, hoje pega o copinho dela e toma água, também se alimenta direitinho, não fica doente. Ela cria, dentro do possível, uma independência, tem um desenvolvimento cognitivo melhor, não fica prostrada."

Letícia, 15, em sua casa no Tatuapé, na zona leste de São Paulo; a adolescente usa canabidiol para controlar crises de epilepsia - Bruno Santos/Folhapress

A lista de benefícios atribuídos ao uso do CBD por Tadeu Di Pyetro, 71, também é extensa. Após tentativas frustradas de tratar dores intensas causadas por hérnia de disco e fibromialgia, doença que afeta músculos e articulações, o ator iniciou há um ano e meio seu tratamento com Cannabis medicinal e diz que, desde então, voltou a ter qualidade de vida.

"Por causa da fibromialgia eu tinha dores mesmo estando deitado. Joelhos, quadril, tudo, uma coisa horrorosa. Passei a 'comprar uma farmácia' todo mês, medicamentos pesados contra dor, e não resolvia. Fora os efeitos colaterais", afirma. "O canabidiol foi imprescindível para mim. As dores melhoraram muito e hoje posso dizer que me livrei de dezenas de remédios, dezenas mesmo. Também passei a dormir melhor, tenho insônia crônica há mais de 20 anos."

Eu estava quase imobilizado, não tinha movimento. Imagina um ator que não consegue usar o corpo? Se eu disser que vou seguir essa orientação [do CFM], vou estar me matando

Tadeu Di Pyetro

Ator, tem quadro de fibromialgia

Mesmo com as dificuldades que podem surgir a partir da nova resolução do CFM —nesta quinta (20), após pressão do Ministério Público e de diversas entidades, a entidade anunciou a abertura de uma nova consulta pública sobre canabidiol—, Di Pyetro afirma que nada o fará voltar à medicação anterior.

"Vou buscar [CBD] onde tiver. Não vou abrir mão. É meu direito como cidadão cuidar da minha saúde. Tenho uma esposa, tenho mãe de 96 anos, tenho filho. Se eu não me cuidar, vou criar uma situação muito ruim para a minha família, todo mundo vai ter que cuidar de mim. Eu estava quase imobilizado, não tinha movimento. Imagina um ator que não consegue usar o corpo?", questiona. "Se eu disser que vou seguir essa orientação, vou estar me matando. É uma questão de sobrevivência."

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