Paul Krugman

Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

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Descrição de chapéu The New York Times

'Liberdade', a Flórida, e o desastre da variante delta

Estado americano tem cobertura vacinal dos jovens pior do que a média nacional e enfrenta surto de Covid

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The New York Times

Ron DeSantis, o governador da Flórida, não é estúpido. Mas ele é ambicioso, e supremamente cínico. Assim, quando diz coisas que parecem estúpidas, vale a pena perguntar o motivo. E suas recentes declarações sobre a Covid-19 nos ajudam a compreender por que tantos americanos continuam a morrer ou a adoecer severamente por conta do coronavírus.

O pano de fundo, no caso, é a catástrofe em curso nos serviços de saúde da Flórida.

Agora temos vacinas altamente efetivas e gratuitas disponíveis para todos os americanos com idade de mais de 12 anos. Houve muito exagero na mídia sobre contágio pela variante delta de pessoas já vacinadas, e os casos sérios de Covid-19 entre essas pessoas continuam a ser ainda mais raros. Não existe um bom motivo para que continuemos a sofrer severamente com a pandemia.

Mas a Flórida está enfrentando um surto de Covid pior do que aquele que havia experimentado antes do início da vacinação. Há mais de 10 mil moradores do estado hospitalizados, cerca de 10 vezes mais que o número de pacientes da doença em Nova York, um estado com número semelhante de residentes; 58 moradores da Flórida estão morrendo da doença a cada dia, ante seis pessoas em Nova York. E o sistema de hospitais da Flórida está sob pressão severa.

Não há mistério sobre os motivos para que isso esteja acontecendo. A cada estágio da pandemia, DeSantis agiu na prática como aliado do coronavírus, por exemplo, ao divulgar ordens que impediam que empresas exigissem que os fregueses mostrassem prova de vacinação e que as escolas requeressem o uso de máscaras. Em termos mais gerais, ele ajudou a criar um estado de espírito no qual o ceticismo quanto às vacinas floresce e a recusa em se precaver é normalizada.

Uma nota técnica: os índices de vacinação na Flórida são bem mais baixos do que em estados na região nordeste dos Estados Unidos, mas acompanham a média nacional. No entanto, a probabilidade de vacinação é muito mais alta entre as pessoas mais velhas do que entre as mais jovens, na Flórida e em todos os outros lugares; e a Flórida, claro, abriga uma proporção consideravelmente mais alta de residentes mais velhos. Entre as faixas etárias mais jovens, a vacinação no estado fica bem abaixo da média nacional, e ainda mais abaixo da média nos estados governados pelos democratas.

Assim, considerados esses desdobramentos desanimadores, deveríamos antecipar que, ou ao menos ter a esperança de que, DeSantis reconsiderasse sua posição. Na verdade, ele vem só procurando desculpas —o problema todo é o ar condicionado! O governador tem afirmado que a adoção de quaisquer restrições novas representaria custo inaceitável para a economia —embora o desempenho recente da Flórida pareça terrível para qualquer pessoa que dê valor à vida humana.

Acima de tudo, ele vem martelando na tecla da conspiração de esquerda, e cartas enviadas por ele a doadores de verbas para o Partido Republicano declaram que a “esquerda radical” está chegando para “roubar sua liberdade”.

Assim, vamos falar sobre o que a direita significa quando usa a palavra “liberdade”. Desde que a pandemia começou, muitos conservadores vêm insistindo em que ações adotadas para limitar o número de mortes —distanciamento social, uso obrigatório de máscaras e agora a vacinação— deveriam ser escolha pessoal. Essa posição faz algum sentido?

Bem, dirigir bêbado também é uma escolha pessoal. Mas quase todo mundo compreende que essa é uma escolha pessoal que coloca outras pessoas em risco: 97% do público considera que dirigir sob o efeito do álcool é um problema sério. Por que não vemos unanimidade semelhante quanto à recusa em receber vacinação, uma escolha que ajuda a perpetuar a pandemia e coloca outras pessoas em risco?

É verdade que muita gente duvida da ciência; a correlação entre a recusa à vacina e o número de mortes por Covid é tão real quanto a correlação entre dirigir embriagado e o número de mortes em acidentes de trânsito, mas menos evidente a olho nu. Mas por que as pessoas da direita são tão receptivas à desinformação sobre esse assunto, e se enraivecem tanto com os esforços para expor os fatos?

Minha resposta é que, quando as pessoas da direita falam sobre “liberdade”, o que elas de fato querem dizer fica mais próximo de “defesa do privilégio” —especificamente, o direito de certas pessoas (em geral homens, cristãos e brancos) a fazer o que quer que desejem.

Não por coincidência, se recuarmos às raízes do conservadorismo moderno, encontramos figuras como Barry Goldwater, que defendia o direito de empresas a discriminar americanos negros. Em nome da liberdade, claro. Boa parte do pânico recente sobre a “cultura do cancelamento”, ainda que não todo ele, gira em torno de proteger o direito de homens poderosos a maltratar mulheres. E assim por diante.
Assim que você compreende que a retórica da liberdade na verdade gira em torno do privilégio, coisas que na superfície parecem grosseiramente incoerentes e hipócritas começam a fazer sentido.

Homem de terno em púlpito
Ron DeSantis, governador da Flórida, durante evento em Miami - Jose Raedle/AFP

Por que, por exemplo, os conservadores insistem tanto no direito das empresas a tomarem suas próprias decisões, sem regulamentação, mas se apressam a lhes recusar o direito de negar serviço a clientes que não usem máscaras e nem mostrem prova de vacinação? Por que a autonomia dos distritos escolares locais é uma questão de princípio fundamental —a não ser que eles desejem impor o uso de máscaras ou ensinar aos seus alunos a história racial dos Estados Unidos? Tudo gira em torno de que privilégios estão sendo protegidos.

A realidade do que a direita quer dizer com “liberdade” em minha opinião também explica a raiva especial quanto a regras que imponham mínimas inconveniências em nome do interesse público —como na guerra dos detergentes alguns anos atrás. Afinal, só devemos pedir que os pobres e as minorias façam sacrifícios.

De qualquer forma, quando você ouvir DeSantis invocando a “liberdade” a fim de escapar à responsabilidade por sua catástrofe do Covid, lembre-se de que, quando ele a diz, a palavra não significa aquilo que você pensa que ela significa.

Tradução de Paulo Migliacci

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