Pedro Hallal

É epidemiologista, professor da Escola Superior de Educação Física da Universidade Federal de Pelotas e coordenador do Epicovid-19, o maior estudo epidemiológico sobre coronavírus no Brasil.

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Pedro Hallal
Descrição de chapéu Coronavírus

Correlação e causalidade

A relação entre negacionismo e mortalidade por Covid-19 é causal?

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Um dos grandes desafios da ciência sempre foi distinguir simples correlações entre dois fenômenos de relações de causa e efeito. É elementar na ciência saber que nem todas as correlações são causais. Até por isso, décadas atrás, um dos maiores epidemiologistas da história, Sir Austin Bradford Hill, publicou um texto com nove critérios que nos ajudam a distinguir correlações simples de relações causais. O Sir Hill é o mesmo que, ao lado do Sir Richard Doll, descobriu que o cigarro aumentava o risco de câncer de pulmão. É desse nível de cientista que estamos falando.

Sepultadores paramentados enterram caixão no Cemitério Vila Formosa, em São Paulo
Sepultadores paramentados enterram caixão no Cemitério Vila Formosa, em São Paulo - Mathilde Missioneiro - 27.abr.2021/Folhapress

Pois bem, há mais de um ano venho mostrando que existe uma correlação fortíssima e linear entre o percentual de votos obtidos pelo atual presidente nas últimas eleições e a mortalidade por Covid-19, utilizando dados oficiais das mais de 5.500 cidades brasileiras. O incômodo gráfico utiliza dados do Tribunal Superior Eleitoral e divide cada uma das cidades brasileiras em dez grupos, de acordo com o percentual de votos obtidos pelo atual presidente no segundo turno das eleições de 2018. No eixo vertical, o gráfico utiliza dados atualizados do Ministério da Saúde sobre a mortalidade acumulada por Covid-19 para cada grupo de 100 mil habitantes. ​

Caso não houvesse nenhuma relação entre os votos obtidos pelo atual presidente e a mortalidade por Covid-19, a linha azul seria basicamente reta, obviamente com pequenas flutuações causadas pela variabilidade dos dados. No entanto, desde o início da pandemia, cada vez que rodamos essa análise, obtemos exatamente o mesmo resultado: quanto maior a votação do atual presidente, maior a mortalidade por Covid-19.

Sempre que apresento esses dados, as reações são as mais variadas:

  • O grupo mais radical, cujo guru acabou falecendo da doença que pregava não existir, e para a qual já existe vacina, parte imediatamente para o xingamento.
  • Um segundo grupo adota um tom mais "professoral", tentando me ensinar epidemiologia e as razões pelas quais essa análise é "equivocada".
  • Um terceiro grupo adota um tom mais cauteloso, surpreendendo-se com o estarrecedor resultado, e tentando compreender a relação.
  • O quarto grupo já adota um tom mais indignado, simplesmente não conseguindo deixar impune o negacionismo que já matou familiares e amigos de todos os leitores dessa coluna.

Obviamente que há muito espaço para os argumentos apresentados pelos grupos 2 e 3. A ciência vive de questionamentos. O grupo 2 normalmente começa a buscar explicações alternativas para a correlação observada, que não o fato de que o negacionismo realmente é causa de maior mortalidade por Covid-19.

As principais são:

(a) O atual presidente teve mais votos entre as pessoas mais velhas, que também são mais vulneráveis ao risco de morte por Covid-19.

(b) O atual presidente teve mais votos entre as pessoas e cidades mais ricas, e isso pode distorcer os resultados.

(c) O atual presidente teve mais votos em cidades com maior densidade demográfica, e isso pode distorcer os resultados.

A verdade é que todas as análises que fizemos testando essas explicações alternativas não modificam em nada o resultado apresentado.

Talvez devêssemos então testar os nove critérios de causalidade do Sir Hill para ver se há razão para suspeitar de uma relação causal entre negacionismo e mortalidade por Covid-19. Sim, já fizemos isso, e o resultado é assustador, embora não surpreendente. Como se fosse o gabarito de uma prova perfeita, o check list do Sir Hill é preenchido, item por item, no caso da relação entre negacionismo e mortalidade por Covid-19. Há evidências corroborando cada um dos nove critérios listados pelo Sir Hill muitas décadas atrás.

Um princípio básico da epidemiologia é que mortes não acontecem por acaso. O Brasil deveria se indignar muito mais ao observar que tem uma mortalidade por Covid-19 entre quatro e cinco vezes maior do que a média mundial. O negacionismo mata, e quem paga com a vida são os nossos amigos e familiares.

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