Rafael Muñoz

Economista líder para o Brasil do Banco Mundial, já trabalhou para a instituição na Ásia e na África.

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Covid-19 ameaça os frágeis avanços na igualdade feminina

Não podemos deixar que a pandemia comprometa conquistas dos últimos 25 anos

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Há 25 anos a ONU (Organização das Nações Unidas) adotava a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, considerada uma Carta Internacional dos Direitos da Mulher, tornando histórica a 4ª Conferência Mundial sobre as Mulheres. Os 189 países signatários, entre os quais o Brasil, se comprometeram a implementar medidas estratégicas em 12 áreas críticas para promover a igualdade de gênero: pobreza, educação, saúde, violência, conflito armado, economia, poder e tomada de decisões, mecanismos institucionais, direitos humanos, mídia, meio ambiente e meninas. Os compromissos são referência ainda hoje para o desenvolvimento de políticas nacionais, associadas ao desenvolvimento dos Estados no plano social.

Desde então, muito se avançou no mundo para remover barreiras sistêmicas à inclusão social e econômica das mulheres. Em termos de educação e saúde, os resultados alcançados nas últimas décadas são alentadores. O número de meninas fora da escola caiu em 79 milhões nos últimos 20 anos, e hoje dois terços delas estão matriculadas no ensino secundário, em comparação com apenas um terço em 1998. Além disso, entre 1990 e 2015, a mortalidade materna no mundo caiu cerca de 44%. Houve também grande progresso em leis e políticas, historicamente discriminatórias contra mulheres e meninas como relatado em artigo anterior, com base no relatório do Banco Mundial Mulheres, Empresas e o Direito.

O Brasil acompanhou esses avanços nos direitos e proteções à mulher, em consonância com as metas da declaração. Desde o início dos anos 1990, diversas leis foram aprovadas para diminuir desigualdades entre homens e mulheres: aumentou-se o período de licença-maternidade e introduziu-se a licença-paternidade; foram abolidas restrições ao trabalho das mulheres em certos setores e em horário noturno; proibiu-se a discriminação de gênero no trabalho; criminalizou-se o assédio sexual; e foi adotada a Lei Maria da Penha contra a violência doméstica. Apesar das conquistas, ainda estamos longe de implementar plenamente as ações pactuadas em 1995.

De acordo com o Fórum Econômico Mundial, o Brasil registra hoje uma das maiores lacunas de gênero da América Latina, ocupando o 22º lugar em igualdade de gênero entre 25 países da região. Em termos globais, o país está em 92º lugar dentre 153 analisados. Se mantido o ritmo atual, levaria pelo menos 59 anos para alcançar a igualdade entre homens e mulheres nas quatro áreas analisadas –saúde, educação, trabalho e política– sendo as maiores disparidades registradas nas duas últimas.

No Brasil, a taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho é de apenas 54%, em comparação com 74% entre os homens. Além disso, elas sofrem segregação ocupacional, com impactos diretos em sua renda. As mulheres são maioria em empregos na área de serviços (85,2%, contra 59,1%, homens), enquanto eles predominam em empregos na indústria (27,7%, homens, contra 10,6%, mulheres). Ainda que façam o mesmo trabalho que os homens, elas ganham, em média, um quarto a menos do que eles. Essa diferença é ainda mais acentuada em cargos que exigem maior escolaridade.

As oportunidades econômicas das mulheres são também prejudicadas pelas responsabilidades –predominantemente atribuídas a elas– com cuidados e tarefas domésticas –a chamada “economia do cuidado”. Dados do IBGE mostram que as mulheres dedicam 18,1 horas semanais a esse tipo de trabalho não remunerado, em comparação com 10,5 gastas pelos homens, resultando, para elas, em um menor tempo disponível para a atividade produtiva.

A desigualdade no campo político –eixo também da Plataforma de Pequim– continua abissal. Com 75 mulheres dentre os 513 representantes na Câmara dos Deputados, e 11 Senadoras de um total de 81 membros do Senado, a representação feminina no Congresso Nacional, de apenas 14% no total, está longe da almejada paridade. Essa realidade se reflete também nas posições de liderança no setor privado, onde as mulheres ocupam a presidência de apenas 13% das empresas no país.

As brasileiras também enfrentam altas taxas de violência contra a mulher. O recém-lançado Atlas da Violência mostra que 4.519 mulheres foram assassinadas em 2018, um aumento de 4,2% em relação à incidência em 2008. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2019 mostram, ainda, que se registra um caso de violência doméstica a cada dois minutos e 180 estupros por dia no país. Dados da CEPAL também apontam para o Brasil como o país com as mais altas taxas de feminicídio entre os analisados, incluindo a Argentina, México, Uruguai e Espanha.

A pandemia da Covid-19 agravou ainda mais a situação. Como mostra a nota técnica “O Combate à Violência contra a Mulher (VCM) no Brasil em Época de Covid-19” do Banco Mundial, registrou-se, nos primeiros dois meses de confinamento, um aumento de 22% nos casos de feminicídio e de 27% nas denúncias pelo Ligue-180, em comparação ao mesmo período de 2019. E o retrocesso não se limita apenas à questão da violência.

As mulheres estão sofrendo maiores perdas de emprego, reduções salariais e aumento do tempo com afazeres domésticos do que os homens. De acordo com a Pnad Contínua, sete milhões de mulheres abandonaram o mercado de trabalho na última quinzena de março, quando começou a quarentena, dois milhões a mais do que os homens. Além da demissão, elas têm mais dificuldades de procurar trabalho e se manter no mercado, em grande parte visto o aumento nas responsabilidades com afazeres domésticos, com filhos em casa, e menores oportunidades de trabalho remoto. Nos três primeiros meses de 2020, o desemprego feminino chegou a 14,5%, ante 10,5% do masculino, a maior diferença desde 2017.

Tantos desafios precisam de uma resposta adequada. Por exemplo, leis e medidas para garantir a renda e maior proteção para as mulheres foram adotadas, dobrando e priorizando o auxílio emergencial para mulheres provedoras de família monoparental e determinando como essenciais os serviços de atendimento a mulheres em situação de violência. A flexibilidade no emprego e a experiência de home office para muitos, exigida pela quarentena, deveria significar uma participação mais ativa dos homens nas atividades domésticas –criando assim condições mais favoráveis para as mulheres. Não podemos deixar que a pandemia comprometa as conquistas dos últimos 25 anos.

Esta coluna foi escrita em colaboração com Paula Tavares, advogada especialista sênior em gênero do Banco Mundial.

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