Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Mulheres da Maré fazem a cabeça e o cabelo para honrar o legado de Marielle

Curso de cabeleireiro é oportunidade para moradoras da favela em meio a cotidiano de violência

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Enquanto uma tinge as madeixas de vermelho, outra escova os fios rebeldes e a terceira ajeita os cachos naquela balbúrdia típica de salões de beleza.

Só que ali na Casa das Mulheres da Maré, o centro de estética não faz só o cabelo, mas também a cabeça das 48 moradoras inscritas no primeiro curso de formação de assistente de cabeleireiro.

“Além das técnicas, aprendi aqui a ser mais mulher, a ser independente e ainda a me achar linda, maravilhosa”, afirma a dona de casa Ana Paula Araújo, 30, casada com um padeiro e mãe de um casal de filhos.

Ela se formou na primeira turma do projeto Maré de Belezas, uma parceira da Redes da Maré, finalista do Prêmio Empreendedor Social 2016, com a L’Oréal. “Junto com o diploma veio a autoestima.”

A formatura foi em 24 de julho, após quatro meses de aulas. “As mulheres da Maré são potentes e cotidianamente atravessadas por uma série de violências, que ultrapassam o espaço doméstico”, afirma Alessandra Pinheiro, coordenadora do projeto.

As duas formações profissionais oferecidas no espaço levam em conta os dados do censo da Maré, que apontam salão de beleza e alimentação como as duas áreas mais associadas ao empreendedorismo feminino nas 16 comunidades que foram o complexo de favelas.

“São dados que mostram a necessidade de empoderamento e de uma profissionalização qualificada para estas mulheres, garantindo que elas tenham igualdade de oportunidade no acesso ao mercado de trabalho”, completa Alessandra.

AMPLIAR HORIZONTES

A meta da L’Oréal é capacitar 300 mulheres de comunidades do Rio de Janeiro até o final do ano, em cursos ministrados na Maré e em outras duas escolas em Nova Iguaçu. 

A gigante mundial de cosméticos se junta a ONGs para atuar em territórios pouco desbravados pela indústria da beleza. “A ideia é valorizar talentos das comunidades e fazer a empresa crescer neste diálogo e também nos aproximar da realidade brasileira”, afirma Maya Colombani, diretora de Sustentabilidade da L’Oréal.

Abrir uma porta para as moradoras da Maré significa ampliar horizontes.

“As pessoas que moram nestas comunidades são muito pouco valorizadas. Então, fazer curso, se especializar no que se gosta, é como se abrisse a porta do mundo para você lá fora”, diz Ana Paula. Ela sonha em cursar uma faculdade de design de interiores.

A ideia do curso de beleza surge em um território conflagrado pelo perene conflito entre tráfico, milícia e Estado. “O Maré de Belezas é mais uma forma de se unir e criar resistência”, explica a arte-educadora Alessandra.

“Ser mulher na Maré é difícil. Eu sou trabalhadora, não uso drogas, mas convivo com o tráfico, que tem impacto grande na minha vida”, relata Tatiana Nascimento, 38, desempregada.

Ela conta que voltou a estudar embalada pelo curso de assistente de cabeleireira. “É algo que sempre quis fazer, mas nunca ia conseguir pagar”, diz ela, mãe de um garoto de 11 anos.

“Falo para meu filho estudar, ter uma profissão. Quero que ele conheça o mundo”, diz ela, um dia depois da morte do estudante Marcos Vinícius da Silva, 14, a caminho da escola, por um tiro disparado durante operação com blindado e helicóptero da polícia na favela.

Tiroteios que impõem toca de recolher e uma crônica sem fim de mortes por balas perdidas.

O EXEMPLO DE MARIELLE

Nascida e criada na comunidade, Marielle Franco é o símbolo maior da luta das moradoras do complexo. A vereadora assassinada em 14 de março foi uma das presenças ilustres da inauguração da Casa das Mulheres da Maré, que hoje abriga o curso de beleza e outro de gastronomia, além de aulas de gênero e assistência na área de direitos.

“Marielle sempre se fazia presente. Quando não era ela pessoalmente, vinha alguém do seu mandato coletivo”, conta Andressa Jorge, coordenadora da Casa das Mulheres da Maré, que era amiga da vereadora.

Ela pranteia a perda pessoal e coletiva. “Marielle era uma referência que está diretamente refletida em todas as mulheres da Maré. São elas que ficam quando acontecem as situações catastróficas de violência. São elas que choram a perda dos filhos. São elas que estão catando cacos de si próprias.”

Andressa ressalta que, por machismo e racismo estruturais, as mulheres da comunidade têm pouco cuidado de si e não encontram tempo para olhar para elas mesmas. “Aqui é um espaço também de valorizar as potências. É um lugar de encontro, de confluências. A prerrogativa da casa é estar sempre aberta para recebê-las e permitir a troca, a empatia.”

A casa abriga também a Maré de Direitos, com atendimento de assistente social, psicóloga e advogada. “É um lugar para acolhimento, socorro, em caso de violência doméstica ou violência do Estado.”

Para se matricular no curso, Tatiana fez ouvido de mercador para as provocações do pai do seu filho. “Você vai fazer curso de quê? Pra quê?”, indagou o ex-companheiro. “Olha o nome do lugar: Casa das Mulheres. Pensei que isso fosse um prostíbulo.”

Palavras negativas que não a detiveram. “Quero conquistar minha independência financeira, minha casa.”

Tatiana conta que já trabalhou como vendedora, cuidadora de idosos, babá, e em barraca de feira. “Estava sempre sendo a escravinha de alguém, limpando a casa em troca de um prato de comida.”

A necessidade de renda vai além das questões práticas da sobrevivência. “Eu preciso ter vida própria. Vivo na dependência de um ex. O pai da minha filha é muito ciumento. Ele me agredia. Não deu certo e saí de casa. Ele pegava faca, me batia, dizia que ia me matar”, relata.

A agora auxiliar de cabeleireira lista os muitos aprendizados que espera colocar em prática em breve em um salão próprio. “A professora ensina muito bem e a gente recebe informação que serve para a profissão e também para a vida”, diz.

BELEZA AFRO

Para além das técnicas sobre tintura e textura, as alunas aprenderam também a tratar cabelo crespo sem necessariamente apelar para o alisamento. “Agora sei escovar sem queimar o fio, nem usar tanta química”, diz Tatiana.

Incluir técnicas para cabelos afro foi um dos diferenciais do curso na Maré. "Foi crucial neste projeto da L’Oréal trazer esta temática. Estamos em território de favela, onde a maior parte da população é negra”, ressalta Andressa.

Dentro das aulas de gênero, abriu-se espaço para discussão sobre estética afro. As professoras e instrutoras do Maré de Belezas tiveram formação básica sobre cabelos crespos. “Tivemos oficinas para trabalhar cachos, tranças e com cabelos sem alisamento, uma forma de valorizar a estética black, que vai contra o padrão estabelecido.”

Aulas serviram também para ensinar como enfrentar preconceitos e fortalecer a autoestima para aquelas que decidiram assumir o cabelo natural. “Foi oportunidade para troca de experiências entre aquelas que estão fazendo a transição", explica Andressa. "Mostramos modelos e referências de artistas e figuras históricas.”

Uma injeção de estima que levou Tatiana a fazer dieta, a se gostar mais e a olhar o futuro  com mais esperança. “A educação é importante. A gente só consegue lidar com os problemas da vida quando a gente tem instrução. Meu mundo ficou muito maior.”

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