Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Descrição de chapéu Dias Melhores drogas

As muitas vidas de Xal: de órfã e herdeira do crack a autora de livro

A trajetória da ex-presidiária Adriana Graças Pereira ao longo de 37 anos em abrigos, prisões e ruas, entre assistência social, violência e crime

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Adriana Graças Pereira, orfã, ex-presidiária e usária de crack, está lançando a autobriografia "Xal", sobre a sua trajetória de superação Karime Xavier/Folhapress

"Xal é um bebê que se libertou das drogas, está reatando laços, escreveu um livro e dá entrevistas", resume Adriana Graças Pereira, falando sobre si mesma na terceira pessoa.

Usa o apelido que dá nome à autobiografia lançada nesta semana, na qual passa em revista seus quase 39 anos de existência.

Uma vida resumida em 240 páginas de "Xal" (ed. Panda Books, R$ 53,90), título seguido por uma série de apostos: órfã, drogada, moradora de rua, prostituída, presidiária.

A autora é tudo isso. "E milagre de superaçao." Faz três anos que esse bebê adulto engatinha longe do crack, consumido por mais de 20 anos.

Sobreviveu duas décadas em situação de rua, com intervalos sob o teto de prisões, após infância de abrigo em abrigo e adolescência coroada com passagem pela Febem, antecâmara da "cana dura" como adulta.

Xal contabiliza oito anos, sete meses e 58 dias na cadeia, em diferentes unidades, por roubo e tráfico.

"Vi morte, sangue, amigos morrerem por causa de centavos; vi amigo matar. Nunca tive família, nem casa. Roubei, fui presa, fugi, caí nas drogas, quase virei bicho", apresenta-se.

Nascida negra e mulher em 9 de maio de 1982 em Santos, define-se como "unissex". "Falo de mim no feminino e no masculino. Depende da hora."

Batizada por uma juíza como Adriana, somado ao sobrenome de Cleide, a mulher morta ao lado da qual teria sido encontrada em um barraco.

Em depoimento ao jornalista Thales Guaracy, ela faz um relato contundente, em primeira pessoa, misto de denúncia social e roteiro de ação, drama e violência reais.

Descobriu cedo que nem a sociedade nem o Estado conseguiam cuidar de uma órfã. Chegou a ser adotada, mas chorou tanto na nova casa que foi devolvida ao abrigo.

No país que aprovaria o Estatuto da Criança e do Adolescente oito anos após o seu nascimento, a santista é a prova de quão falhas eram e ainda são as redes de proteção à infância.

"O Estado não cuida, só transporta de um lado pro outro. É gente com um monte de diploma que não sabe o que fazer com criança."

Sofreu na pele a falência de políticas públicas e da assistência social, assim como tantos outros "menores", como eram chamados os "filhos de ninguém".

Relata ter deixado de ser criança em um abrigo chamado Casa da Criança, onde foi estuprada por um guarda. Tinha 11 anos. "Não teve delegacia, não teve hospital. Apenas silêncio."

Fugiu do abrigo que não era abrigo. Na rua, conheceu a primeira namorada. "Eu já era menino. Sentia nojo e raiva de homem."

Vivenciou brutalidade da polícia após ser pega mais uma vez roubando. Conta que ela e uma colega teriam sido forçadas por dois policiais a se jogar de uma ponte, sob rajada de tiros. Não sabia nadar. Foram resgatadas por pescadores.

Foi parar em outro abrigo. "A assistência social não assiste ninguém", diz, sobre sucessivos encaminhamentos de assistentes sociais, psicólogos e juízes.

"O sistema é assim, pega o caminho mais fácil: põe você aqui, tira você dali, coloca em um novo lugar."

Aos 17 anos, foi pega cheirando cola e levada para Febem. "Foi minha escola." Entre líderes e lideradas, ficou no primeiro grupo que tocava o terror na fundação extinta justamente pelo histórico de violências.

Após cumprimento de medida sócio-educativa por seis meses, Xal foi deixada numa praça no bairro do Limão. "Fui para o centro roubar o de sempre: relógio, celular, corrente de ouro. No mesmo dia, voltei para a Febem."

Esse vaivém se repetiu da pré-adolescência à maioridade. "Quando completa 18 anos, você vai do abrigo pra rua e da rua pra cadeia, da cadeia para a penitenciária. Todos vão se livrando de você."

VIOLAÇÃO DE TÚMULO

Vivia conforme a lei da selva. Como no episódio em que narra ter violado o túmulo do ex-governador Mário Covas, sepultado em 7 de março de 2001 no Cemitério Paquetá, em Santos.

"A gente viu o enterro de longe", relata Xal. Aos 19 anos, vivia em uma maloca na região e diz ter reunido uma turma de maloqueiros para invadir o cemitério à noite. "Os meninos levantaram a pedra, abriram o caixão, pegaram o fecho de ouro e o colar."

Diz não ter conseguido retirar o anel do dedo do "presidente", como o grupo se referia à autoridade recém-sepultada.

A pilhagem, relata, teria sido vendida ao chefe do tráfico do morro São Bento, em troca de crack e maconha. "Por uma mixaria." As flores, negociadas no semáforo na manhã seguinte, Dia Internacional da Mulher.

"Ninguém acredita quando conto essa história, mas fomos nós", reafirma, sobre um dos trechos mais surreais do livro. Não há registro público sobre a violação.

"Sei que isso pode chocar muita gente. Mas essa é a realidade da rua. A realidade do Brasil. Melhor saber."

Xal relata ainda ter roubado um cego e até o cesto de dízimos na Igreja Universal.

Além de roubar, a prostituição bancava o vício. Era quando se relacionava com homens. Em um programa, conheceu o pai do primeiro filho. Gabriel vive hoje com a família paterna na Itália.

Pariu na calçada a segunda filha, Dandara. Mãe e bebê foram levadas para a maternidade, de onde Xal fugiu na fissura por mais droga.

Deixou a criança para trás, dada em adoção. "Eu me arrependo, mas como cuidar de um bebê se não cuidava nem de mim?"

Na terceira gestação, pediu ajuda aos avós paternos. São eles que criam Maria Eduarda, 8.

O crack vencia a parada até então. "Eu vivia para usar pedra. Era meu refúgio, alimentação, onde escondia minhas dores."

Mal completou 18 anos, foi surpreendida pela polícia em uma casa onde estavam escondidas armas e drogas.

Levada para o Segundinho, o 2º Distrito Policial de Santos, passou a ser uma das 200 presas em um espaço para 60. "O mais absurdo é que aquilo era melhor que a Febem."

Começou o "corre" atrás das grades: lavava cobertor, cortava cabelo de gilete, vendia bolo que assava dentro de uma casinha de tijolos forrada de alumínio, com uma resistência elétrica improvisada.

Em menos de um ano, estava de volta às ruas e ao crack. Um ciclo vicioso de miséria, transgressão e crimes a levaria à cadeia outras tantas vezes, onde comandou rebeliões, viveu paixões e perdas.

Em 2003, ao ser solta, fumou um baseado na porta da delegacia para ser presa de novo e ficar perto da mulher que amava. Xal cuidou da parceira, que tinha bronquite asmática e morreria 15 dias depois.

Foi nessa passagem pela prisão que conheceu Flávia Ribeiro de Castro, à frente de um trabalho voluntário com as internas. Aprendeu a ler e a escrever aos 23 anos. "Minha vida começou a mudar."

O trabalho de Flávia durou um ano e rendeu o livro "Flores do Cárcere". Xal é a personagem Girassol. "Ela sempre foi protagonista", diz a ex-professora.

Ela apelidou a aluna de Xal, diminutivo de Xakila, como Adriana ficou conhecida na prisão, em referência à personagem do seriado "Turma do Gueto".

A saga dela no sistema prisional paulista estava no começo. Na Penitenciária Feminina de Santana, na zona norte da capital, ela diz ter cruzado com uma presa famosa, Suzane von Richthofen.

"Grudamos na Strófoni", conta Xal, usando o nome jocoso que as detentas se referiam à colega de pavilhão, ao descobrirem pela TV se tratar da riquinha que participou do assassinato dos pais. "Demos várias pauladas nela e levaram ela embora depois da nossa recepção."

Após liderar uma rebelião em 2012, Xal seria transferida para Tremembé, penitenciária de segurança máxima no interior do estado. "Lá era só diversão." Fazia sucesso entre as companheiras com seu estilo masculino.

LIBERDADE PRA QUÊ?

Em 2017, ganhou a liberdade. "Livre pra quê?", perguntava-se, sem um tostão nem ninguém à espera. Saiu com autorização para obter uma passagem para qualquer lugar. Levou horas para conseguir carona até a rodoviária.

"O Brasil é o país da metade. Tudo é nas coxas, nada é feito pra funcionar. A gente tem um Estado que não pensa", constata Xal. Com antecedentes e sem emprego, "diz aí como isso pode acabar bem?".

De volta às ruas, continuou a descida ao inferno do crack. "Perdi os dentes, comecei a ficar feia, descabelada, parecia um bicho."

É quando o destino de Xal se cruza novamente com o de Flávia. A ex-professora vai em busca das ex-presidiárias para o documentário "Flores do Cárcere", dirigido por Paulo Caldas e Bruna Cunha, que estreou em março.

"Eu era a única do grupo que tinha voltado para o mesmo lugar: a rua, o crack, a vida louca", recorda-se Xal.

Flavia se sensibilizou: "Por mais que tivesse conhecido Xal num ambiente de maus tratos e desumanidade como a cadeia, vê-la deitada na calçada, coberta por uma lona de plástico, mexeu comigo".

Alugou um quarto para a ex-aluna. "Isso mudou minha vida. Tinha uma pessoa que se importava comigo", emociona-se Xal.

"Não precisava mais fugir do sol, do frio, dos perigos, da polícia. Ficava na cama com meu urso gigante de pelúcia."

Aceitou ajuda de Flávia para se internar numa clínica de reabilitação. Teve uma recaída sete meses depois. De novo, a "mãe" estava perto. "Você não está sozinha", foi a mensagem que ouviu após torrar o salário e o celular na boca de fumo.

"Eu nunca tinha escutado isso de ninguém. Meu amor por Flávia é de filha. Ela é a minha família", afirma Xal, "limpa" há dois anos. "Estou muito bem sem o crack. Era uma pessoa vivendo no escuro."

É quando nasce a Casa Flores, fundada para apoiar egressas e seus filhos. Xal morou um tempo na ONG até alugar um cantinho para chamar de seu no Tucuruví, com a grana que tira fazendo faxina. "Tenho minha casa, cachorro, planos e amigos."

Recuperou o sorriso, exibindo os dentes refeitos. E festejou o primeiro aniversário aos 37 anos, em pleno renascimento, quando passou a sonhar em reatar os laços com os filhos, a quem dedica o livro.

Cenas de futuros capítulos ainda incertos. "Vi o fim tantas vezes e estou aqui. Convivi com puta, ladrão, veado, usuários de droga. Sou exemplo para quem reclama da vida e acha que nada vai dar certo."

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