Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Barraco em favela de BH é favorita em prêmio de Casa do Ano no mundo

Projeto assinado por coletivo de arquitetos para líder comunitário do Aglomerado da Serra, na capital mineira, foi selecionado em concurso internacional da ArchDaily

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São Paulo

A Casa da Vila Pomar do Cafezal, situada no maior complexo de favelas de Belo Horizonte, o Aglomerado da Serra, não tem CEP nem fica em uma rua asfaltada, mas está concorrendo ao Building of the Year 2023 (Construção do Ano de 2023), concurso mundial promovido pela ArchDaily.

O maior portal de arquitetura no mundo selecionou o projeto da residência do agitador cultural e empreendedor social Kdu dos Anjos, 32, na categoria casa.

"O barraco do Kdu", como a obra de dois andares e 66 m² ficou conhecida na favela, aparece no site ao lado de mansões em lugares paradisíacos e condomínios de luxo mundo afora.

A Casa no Pomar do Cafezal, que virou o "barraco do Kdu" e foi indicada a Casa do Ano 2023 pela ArchDaily, foi a segunda obra realizada pelo coletivo Levante no Aglomerado da Serra, maior favela de Belo Horizonte - Leonardo Finotti/Divulgação

"Moro num beco do serrão, numa rua sem asfalto e que não tem água encanada nem iluminação legal, como no resto da favela", descreve Kdu, orgulhoso de ver a própria casa disputando um concurso internacional de arquitetura.

Trata-se, no entanto, de um barraco cheio de diferenciais. Entre eles, o fato de ser fruto de um projeto assinado pelos arquitetos Fernando Maculan e Joana Magalhães, integrantes do coletivo Levante, formado por engenheiros, estudantes, designers e paisagistas voluntários.

"Estamos falando de um barraco de favela que não tem tinta cara nem porcelanato", diz o morador do sobrado em tijolo aparente com um quarto, cozinha americana, dois banheiros, área de serviço, deck e duas lajes que viraram espaço de convivência.

Logo na entrada, uma escada dá as boas-vindas aos visitantes. "Parece que entramos em um desenho do Escher, diante da escolha de subir ou descer para os dois ambientes da casa", explica Kdu, referindo-se ao artista gráfico holandês conhecido por trabalhos com ilusão de ótica.

Foi utilizado na construção o clássico bloco de oito furos, só que assentado na horizontal e com a face frisada à mostra. Algo incomum no morro, onde costumam ser assentados em pé, o que rende mais e acelera a construção.

"O tijolo ficou exposto, não foi rebocado nem pintado para ser integrado à estética da favela", diz Kdu.

Entre os diferenciais da casa estão as grandes portas de ferro e vidro, que funcionam como janelões, responsáveis pela ventilação circular e por valorizar a bela vista do alto do morro.

O projeto elétrico também não é embutido, dando uma cara bem industrial aos ambientes. O chão é de cimento queimado. "Vermelhão comunista", brinca Kdu, que destaca ainda o verde dos 60 vasos de plantas que dão vida a todos os espaços.

Kdu rebate as críticas de "gourmetização da favela". Foi chamado de "Cosplay de rico" na internet, diante da repercussão da indicação ao prêmio internacional.

"Não quero mesmo ser pobre na vida", rebate ele. "Quero morar bem e ter do bom e do melhor. As telhas da casa dos meus pais já voaram com chuva."

O feliz proprietário se mudou para o novo endereço em dezembro de 2020, quando foi inaugurada a obra que custou R$ 150 mil.

O valor parecia um sonho distante quando Kdu viu pela primeira vez o projeto arquitetônico. "Isso é coisa de rico. Não vou ter condições de fazer."

Ele morava até então com os pais em uma típica construção de favela, que foi ganhando puxadinhos ao longo da vida. Hoje é uma "mansão" de seis andares, diz ele, sobre a casa que família construiu em um terreno trocado por um fusca e uma TV. "Foi meu pai que desenhou nossa casa".

Nascido e criado na favela, Kdu viu a sua nova residência sair das pranchetas dos mesmos arquitetos que projetaram o Centro Cultura Lá da Favelinha, do qual é gestor.

Em 2020, o projeto social capitaneado por Kdu foi um dos destaques do ano do Prêmio Empreendedor Social em Resposta à Covid-19. Foi também em meio à pandemia que o líder comunitário ganhou fôlego para começar a erguer a estrutura do futuro lar.

"Comecei a fazer muitas palestras e foi assim que consegui o dinheiro para ir subindo a casa", relata ele, sobre a visibilidade que veio pós-prêmio e por ações como o Favelinha Fashion Week e a marca de roupas recicladas, Remexe.

A primeira parte da obra foi um muro de contenção, que sustenta o barranco. "Essa estrutura segura o beco inteiro", diz ele, sobre a realidade de uma vizinhança acostumada a desmoronamentos e barracos destruídos pela ação das chuvas.

O terreno íngreme onde Kdu ergueu sua casa fica no beco do Jenipapo, situado na vila que ganhou um pomar, que lhe dá o nome e foi plantado para evitar invasões em uma área de risco.

Kdu construiu seu sonho de moradia na rua Sustenido, todas ali tem nomes relacionados à música. A casa chamou a atenção do fotógrafo de arquitetura Leonardo Finotti, cujas fotos foram parar em um editorial, ganhou os sites especializados até chegar ao ArchDaily.

Kdu dos Anjos se apresenta no Estéticas da Periferia
O agitador cultural e empreendedor social Kdu dos Anjos é gestor do Lá da Favelinha - Divulgação

O " barraco do Kdu" acabou entre as dez casas mais curtidas no portal de arquitetura e também figurou entre os 50 projetos mais interessantes do Brasil. Listas que o fazem figurar entre as casas favoritas ao prêmio internacional.

A construção planejada chama atenção ao lado de caixas d’água e barracos inacabados, típicos de favelas, mas está perfeitamente integrada à paisagem do Aglomerado da Serra.

"Fizemos uma escolha deliberada pelo mimetismo, que não é uma decisão meramente estética, mas ética", afirma Fernando Maculan, "Escolhemos materiais e sistemas construtivos usuais em favelas o que permite que a casa seja facilmente replicável."

Segundo o arquiteto, o projeto pode ser copiado e realizado nos tradicionais métodos de autoconstrução e de mutirão, quando a turma se junta para fazer uma laje, por exemplo. "É ótimo que isso aconteça."

Maculan lembra que na favela existe a mão de obra qualificada de pedreiros e mestres de obras, pronta para se somar aos saberes de arquitetos e engenheiros, que agregam soluções simples para garantir melhor circulação de ar e segurança estrutural.

"São obras feitas de dentro para fora, para entender a perspectiva do morador", diz ele, sobre a dúzia de projetos tocados pelo coletivo em favelas.

O primeiro deles foi a sede do Centro Cultural Lá da Favelinha, em 2017, quando Maculan conheceu Kdu, que virou integrante e cliente do coletivo.

Cinco anos depois, o barraco do Kdu ganhou destaque entre 4.500 projetos apresentados no site ArchDaily, onde até o dia 15 de fevereiro os usuários poderão votar em seus preferidos. Cinco projetos por categoria vão chegar à final no dia 23, quando serão anunciados os vencedores.

"Toda essa repercussão é valiosíssima para que se possa refletir mais sobre as favelas, o que elas têm de bom e de potência", diz Maculan.

Se a casinha da rua Sustenido na Vila Pomar do Cafezal se sagrar campeã no concurso internacional vai ter festa na laje do Kdu.

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