Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes

Alexandre Garcia derrapa quando o assunto é ciência

Quando não está dizendo platitudes sobre segurança pública ou a interminável crise política brasileira em rede nacional, Alexandre Garcia gosta de falar de clima. Ou, pelo menos, do que ele acha que seria clima.

No dia 7 de fevereiro, por exemplo, o jornalista da TV Globo resolveu compartilhar uma foto de gente esquiando no bairro parisiense de Montmartre para seu meio milhão de seguidores no Twitter. Limitou-se à legenda "É o aquecimento global", seguido de "On s'amuse" (algo como "a gente se diverte" na língua de Proust).

Garcia é reincidente. Em julho de 2017, resolveu adicionar uma pitada de geopolítica à piada. "Hey, Trump! Assine logo esse aquecimento global ou o Sul vai congelar sob a neve", tuitou, comentando reportagem sobre uma onda de neve em cidades gaúchas. Pelo visto, é esperar demais que uma das caras mais influentes do jornalismo televisivo do Brasil saiba a diferença entre dois conceitos que todo mundo deveria ter aprendido no ensino fundamental. Caro Alexandre, anote aí: "clima" não é a mesma coisa que "tempo".

Nuvem de fumaça expelida pela chaminé de uma fábrica no norte da França
Nuvem de fumaça expelida pela chaminé de uma fábrica no norte da França - AFP

"Clima" é o termo usado para designar os padrões de longo prazo do comportamento da atmosfera e dos oceanos, na escala de alguns anos, décadas, séculos, milênios. Um ano com El Niño é um tipo de variação climática --de prazo relativamente curto. No entanto, quando o sujeito resolve palpitar sobre a neve que andou caindo em Canela (RS) na noite passada, ele está falando do tempo --e mais nada. Tempo esse que pode flutuar, às vezes, de forma independente das tendências climáticas de longo prazo, e é sobre elas, e apenas sobre elas, que o sólido conhecimento científico construído a respeito do aquecimento global tem algo a dizer.

Aliás, vamos combinar que neve em Paris no começo de fevereiro (inverno) ou nas serras rio-grandenses em julho (inverno, de novo) não deveria ser combustível para piadas de tiozão. O aquecimento global só seria capaz de abolir o inverno nesses lugares se... bem, se ele alterasse a inclinação do eixo de rotação da Terra. É essa inclinação, e não a quantidade de carbono que andamos cuspindo na atmosfera nos últimos dois séculos, a responsável por trazer a luz do Sol de forma menos direta para os hemisférios Norte e Sul, respectivamente, em fevereiro e julho.

Aliás, Alexandre, aproveitemos a menção ao astro-rei. Você também andou tuitando em junho de 2017 o seguinte: "Se o Sol não aderir ao Acordo de Paris [sobre mudanças climáticas], não tem jeito. Há bilhões de anos ele é responsável por aquecimentos e esfriamentos da Terra".

OK, variações na luminosidade do Sol são importantes para o clima do planeta. Assim como a dança dos continentes. E o papel dos micro-organismos marinhos. E o vulcanismo. O detalhe é que todas essas influências foram medidas cuidadosamente pelos climatologistas --e descartadas. Nenhuma mudança da atividade solar explica as alterações climáticas dos últimos 150 anos.

Chega de fulanizar a conversa. Garcia é só um sintoma de uma doença muito mais séria: a incapacidade de grande parte da imprensa, aqui e lá fora, de interpretar dados científicos básicos, em parte por deficiências de formação, em parte por pura preguiça intelectual. (Esta Folha é um dos oásis nesse deserto.) Em meio à tempestade de fezes das notícias falsas, achar dados confiáveis e saber interpretá-los vai fazer a diferença entre o bom e o mau jornalismo. Do contrário, todos derreteremos mais rápido que a neve em Paris.

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