Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes

Os dentes da menina

Lesões ajudam a contar vida e morte de criança no sertão pré-histórico

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Existem muitos abismos entre o mundo do século 21 e o passado remoto, mas nada me tira da cabeça que o maior deles é a ubiquidade da morte, e em especial a morte de crianças, há milhares de anos.

Mesmo em países tão desiguais quanto o nosso, perder um filho pequeno hoje é uma tragédia relativamente rara, enquanto pais e mães de séculos atrás sabiam que um terço ou até metade de seus bebês não passaria da primeira infância.

Desse ponto de vista, parece não haver nada de muito surpreendente ou especial num sepultamento descoberto por arqueólogos no Parque Nacional do Catimbau, área do sertão pernambucano rica em formações rochosas peculiares e pinturas rupestres. Deitada de bruços e em posição fetal na cova, a criança (mais provavelmente uma menina, a julgar por detalhes do esqueleto) teria morrido com uns três anos de idade.

Inscrições rupestres em parede de caverna no Parque Nacional do Catimbau (PE)
Inscrições rupestres em parede de caverna no Parque Nacional do Catimbau (PE) - Guilherme Jófili/Flickr

Isso foi há 1.500 anos, quando a região, ao que tudo indica, era habitada por grupos esparsos de caçadores-coletores, cujo modo de vida ainda é pouquíssimo conhecido. Ocorre que os pesquisadores da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) que estudaram o sepultamento, liderados por Sergio Francisco Silva, encontraram marcas estranhas nos dentes da criança e resolveram pedir a ajuda de um dentista-arqueólogo para tentar entender do que se tratava.

Rodrigo Elias de Oliveira divide seu tempo entre o consultório odontológico e as pesquisas que realiza no Laboratório de Arqueologia, Antropologia Ambiental e Evolutiva da USP. A hipótese inicial da equipe pernambucana era que as marcas fossem subproduto do uso dos dentes na fabricação de artefatos (mordendo fibras vegetais, por exemplo). De fato, esse tipo de desgaste é comum na dentição de populações pré-industriais.

Mas a menininha provavelmente era nova demais para isso. E havia outro problema, recorda Oliveira. “Olhei as fotos que eles me mandaram e reparei que os dentes de baixo não tinham marca nenhuma. Estava estranho”, contou-me ele.

Na verdade, as marcas lembravam algo que o pesquisador da USP já tinha encontrado em seu trabalho com pacientes atuais: casos de erosão dentária. É o que acontece quando os dentes perdem parte de sua estrutura mineral quando são expostos a substâncias ácidas. O problema é que tal situação é típica do mundo moderno, com sua abundância de refrigerantes e sucos, ou distúrbios como a bulimia, que envolvem vômitos frequentes; mas raríssima em populações antigas (embora elas certamente tivessem cáries e outros problemas bucais).

A análise mais cuidadosa da dentição da criança, feita com a ajuda de tomografias e microscopia eletrônica, confirmou que se tratava mesmo de erosão dentária, que chegou a eliminar totalmente o esmalte dos dentes em certos pontos. É bem possível que um problema gastrointestinal grave, com duração de meses, tenha causado tanto as lesões nos dentes quanto a morte da menina.

Os dados, publicados na revista científica Dental Anthropology por uma equipe que inclui ainda o arqueólogo André Strauss e outros pesquisadores, podem até acabar ajudando crianças de hoje, diz Oliveira. Se marcas desse tipo surgirem em pacientes atuais, talvez seja um sinal de um problema de saúde mais sério do que o simples consumo excessivo de refrigerantes.

(Esta coluna foi produzida especialmente para a campanha #CientistaTrabalhando, que celebra o Dia Nacional da Ciência. Ao longo do mês de julho, colunistas cedem seus espaços para abordar temas relacionados ao processo científico, em textos escritos por convidados ou por eles próprios.)

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