Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes
Descrição de chapéu Rússia

Dilacerada pela guerra, Ucrânia é o berço dos idiomas falados por quase todos os europeus

Só falamos português graças ao que aconteceu justamente na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia por volta de 5.000 anos atrás

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Nenhuma desculpinha geopolítica é capaz de me convencer da suposta necessidade ou inevitabilidade da guerra na Ucrânia, nem vai me tirar da cabeça a convicção de que Vladimir Putin não passa de um psicopata. Dói pensar na dimensão ainda desconhecida de uma tragédia que está apenas começando, mas o luto também se estende rumo ao passado, engolfando milhares de anos e a nossa história compartilhada —inclusive a minha e a sua, gentil leitor.

Escrevo isso porque, para todos os efeitos, só falamos português graças ao que aconteceu justamente na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia por volta de 5.000 anos atrás. Aliás, essa mesma cadeia de eventos na Europa Oriental pré-histórica foi, em última instância, a responsável por fazer com que as pessoas de hoje falem inglês nos EUA e na Austrália, alemão na Suíça, hindi na Índia e farsi no Irã.

Crânio de indivíduo da cultura Yamnaya, da Ucrânia
Crânio de indivíduo da cultura Yamnaya, da Ucrânia - Natalia Shishlina

Todos esses idiomas e mais uma penca de outros falares extintos, tão diferentes entre si em vocabulário, sintaxe e maneiras de decodificar o mundo, descendem de um ancestral comum, que os especialistas chamam de proto-indoeuropeu. Das 20 línguas com mais falantes nativos no mundo de hoje, dez pertencem à família linguística indoeuropeia, cuja distribuição geográfica, milênios atrás, chegou a alcançar até o atual território chinês.

Foi graças ao intenso trabalho comparativo entre idiomas clássicos da Europa e da Índia —de início, o grego, o latim e o sânscrito— que os pesquisadores começaram a reconstruir essa história compartilhada desde o século 18. Os estudos sobre o proto-indoeuropeu e as línguas derivadas dele se tornaram a base para a compreensão das leis que regem a evolução de todos os demais idiomas do planeta.

A hipótese mais aceita hoje para explicar como essa família linguística alcançou uma distribuição geográfica tão ampla foi formulada com base nas transformações que afetaram as estepes ao redor do mar Negro, abrangendo principalmente os atuais territórios ucraniano e russo, nos princípios da Idade do Bronze.

Tudo indica que estamos falando de uma revolução na mobilidade dos povos da região. Esses grupos, conhecidos coletivamente como a cultura Yamnaya, eram seminômades que adotaram o pastoreio como modo de vida, a exemplo de outros grupos da Eurásia nessa época. Criavam vacas e ovelhas e usavam seus bois para puxar veículos com duas e quatro rodas. Mas a grande inovação cultural associada a eles é a domesticação dos cavalos (a palavra que designa o animal, aliás, é um dos elementos comuns em muitos dos idiomas indo-europeus).

Nos últimos anos, análises de DNA que compararam o genoma dos antigos habitantes das estepes com os de europeus modernos e pré-históricos mostraram que os membros da cultura Yamnaya, ou grupos muito próximos deles, estão entre os mais importantes ancestrais de quem vive na Europa hoje. Cerca de metade do DNA de ingleses, franceses e tchecos, e porcentagens ainda maiores entre noruegueses e lituanos, parece derivar dos grupos das estepes. (A contribuição deles foi menor, entre um quinto e um quarto do genoma, no caso dos povos do sul da Europa, como portugueses e italianos.)

O uso militar dos cavalos pode ter facilitado essa expansão, assim como epidemias e instabilidade social entre os agricultores que viviam no território europeu antes dos recém-chegados. Seja como for, cinco milênios mais tarde, 2,5 bilhões de pessoas são o resultado biológico e/ou cultural dessa história. Não existe prova mais eloquente de que as fronteiras que dividem entre si os europeus, ou quaisquer outros grupos de seres humanos, deveriam ser vistas como ilusórias.

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