Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes
Descrição de chapéu machismo

O (falso) alfabeto dos machos

Supostos machos alfa e sigma seguem visão da masculinidade primordial que tem pouco a ver com o passado humano

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Todo santo dia aparece mais uma ideia de jerico sobre masculinidade nas redes sociais (que estão cada vez mais precisando ser rebatizadas de "sociopáticas"). É um bestiário abarrotado de terminologias esquisitas usando o alfabeto grego ("macho alfa", "macho sigma") ou siglas em inglês ("incel", "MGTOW"). Parece confuso, mas a vantagem é que dá para resumir tudo isso com algumas frases simples: bom mesmo era quando homem mandava em mulher; homem que é homem dá murro na mesa e não limpa a casa, manda a mulher limpar.

É comum que os incautos ou babacas que acabam decorando esse alfabeto grego usem alguma variação do argumento "sempre foi assim". A natureza humana teria sido forjada pela evolução para que os homens se tornassem dominantes, fortes, másculos, enquanto as mulheres teriam sido feitas para a doçura, o recato e as prendas do lar (como diria meu bisavô). Virar essa ordem natural das coisas de cabeça para baixo seria quase um crime contra a humanidade.

Manifestação na avenida Paulista, na região central de São Paulo, em apoio ao Dia das Mulheres
Manifestação na avenida Paulista, na região central de São Paulo, em apoio ao Dia das Mulheres - Bruno Santos - 8.mar.22/Folhapress

Ocorre que, como diria Luke Skywalker, cada uma das palavras nas frases acima está errada. No grande drama da evolução humana, tudo indica que esse negócio de macho mandão é uma invenção relativamente recente —a qual, aliás, deu muita dor de cabeça à nossa espécie.

Com "recente", quero dizer "a partir de 10 mil anos atrás", o que pode parecer uma imensidão de tempo se a gente não considerar que o Homo sapiens já tem lá seus 300 mil anos de idade. Os tais 10 mil anos antes do presente em diante correspondem, grosso modo, ao momento em que membros da nossa espécie começaram a depender principalmente da agricultura e da criação de animais para sua subsistência.

Durante todo o imenso período anterior, nossos ancestrais foram caçadores-coletores. E, se tudo o que sabemos sobre os caçadores-coletores que existem ainda hoje for aplicável ao que éramos no passado — é o que acredita a maioria dos especialistas—, temos más notícias para os machões.

Os caçadores-coletores atuais são tremendamente avessos a qualquer forma de hierarquia —tanto que nem "caciques" com poderes políticos limitados existem entre eles. As decisões do grupo são tomadas por consenso, em geral com participação de todos os adultos de ambos os sexos. Alguma forma de monogamia predomina —raros são os homens com mais de uma companheira.

O que me parece ainda mais curioso, no entanto, é que os caçadores-coletores abominam qualquer tipo de arrogância ou mandonismo. Espera-se que todo sujeito que captura uma presa grande se autodeprecie — dizendo algo como "olha, achei essa anta meio magrinha, dei sorte de acertar a flechada"— e divida a carne com todo o grupo, ficando até com uma porção menor para si próprio.

Quem não segue esse ideal de humildade, contando vantagem, tentando governar a vida dos demais ou sendo violento tende a ser ridicularizado ou mesmo abandonado pelo grupo quando os demais saem em busca de um novo acampamento. Em casos extremos, como os de homicidas, o grupo pode optar por uma espécie de execução coletiva do machão, com flechas disparadas por várias pessoas ao mesmo tempo.

Nos últimos dez milênios, esse padrão ancestral acabou sendo deixado de lado porque a agricultura e a criação de animais possibilitaram o acúmulo de riquezas e poder por parte de alguns homens — justamente, em geral, os praticantes de bullying que ficariam no ostracismo entre os caçadores-coletores. Não há nada de "natural" em ser um macho escroto, portanto: trata-se de uma consequência de um contexto econômico e político que pode e deve mudar com o tempo. E com benefícios para todos nós.

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