Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Monges que observavam eclipses ajudam a mapear erupções na Idade Média

Pesquisadores de Genebra vasculharam anais astronômicos que podem contribuir para entender mudanças climáticas

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Monges fascinados pelo livro bíblico do Apocalipse são tanto os vilões quanto as vítimas no romance detetivesco-medieval "O Nome da Rosa", de Umberto Eco (se você ainda não leu, leia, mesmo se tiver de pular os parágrafos em latim). No mundo real, não se pode negar que houvesse monges obcecados com a ideia de fim dos tempos, mas o interesse deles pelo tema acaba de promover também uma frutífera parceria entre ciência e religião.

Acontece que observações do céu noturno feitas pelos religiosos entre 900 anos e 700 anos atrás ajudaram uma equipe da Universidade de Genebra a datar com mais precisão as principais erupções vulcânicas da época. Os dados obtidos dessa maneira podem trazer avanços importantes sobre as mudanças do clima no passado e, consequentemente, auxiliam também a entender a crise climática do nosso presente.

Manuscrito do século 11 que contém comentário sobre o livro bíblico do Apocalipse - Gennadii Saus i Segura/Wikimedia Commons

Detalhes sobre os monges que acabaram virando climatologistas acidentais acabam de sair na revista especializada Nature. Num trabalho que foi coordenado por Sébastien Guillet, do Instituto de Ciências Ambientais da universidade suíça, a equipe vasculhou anais astronômicos medievais em busca de menções a eclipses da Lua.

A ideia partiu do fato de que os eclipses lunares são particularmente escuros, quase fazendo o satélite da Terra desaparecer totalmente do céu, após erupções vulcânicas de grande escala. As nuvens de partículas lançadas por vulcões poderosos na atmosfera são suficientes para tapar o que sobra de luminosidade lunar durante um eclipse (sem isso, a Lua continua visível, ainda que avermelhada, no céu).

É aqui que a história fica ainda mais curiosa, revelando a mistura de conhecimento científico e crenças místicas por parte dos monges. Diferentemente do que muita gente imagina, na Idade Média todas as pessoas educadas já sabiam que a Terra era redonda. Conheciam ainda, ao menos por alto, o mecanismo dos eclipses, com a sombra dos corpos celestes —no caso em questão, a da Terra— encobrindo outro objeto. Há esquemas explicando isso em manuscritos medievais.

No entanto, também havia a crença de que fenômenos celestes poderiam ser sinais divinos e prenunciar tragédias. Muitos religiosos se interessavam, por exemplo, por uma passagem do Apocalipse que afirma: "O Sol tornou-se preto como um saco de crina, e a Lua inteira como sangue". Como é isso o que acontece em eclipses lunares "normais", os monges costumavam anotar a coloração da Lua sempre que testemunhavam o fenômeno.

No estudo suíço, a equipe verificou que, dos 64 eclipses lunares visíveis na Europa entre os anos de 1100 e 1300, os anais de mosteiros registraram 51 e, em cinco desses casos, houve uma menção à aparência muito escura da Lua. (Seria interessante saber se os monges achavam aquilo mais ou menos assustador que a "Lua de sangue" do Apocalipse, mas é algo que não parece ter sido registrado.)

As datas batem muito bem com erupções que, até agora, só tinham sido inferidas com base em camadas de cinzas vulcânicas que ficaram presas no gelo da Antártida e da Groenlândia. Para Sébastien Guillet, a reconstrução pode ser uma pista importante para entender como começou a Pequena Idade do Gelo, período de queda das temperaturas globais a partir dos séculos finais da Idade Média.

Isso porque erupções vulcânicas muito fortes tendem a resfriar a atmosfera. Há até quem fale em imitar o processo para frear temporariamente o aquecimento global. Provavelmente é ideia de jerico, porque há muitos efeitos colaterais além da queda de temperatura. Entender o que aconteceu no passado é uma boa maneira de compreender essas consequências. Os monges provavelmente diriam amém. Boa Páscoa a todos!

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