Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes
Descrição de chapéu clima

Clima, QI e outras bobagens racistas

Achar que clima e raça determinam inteligência dos povos é sintoma de ignorância sobre como a história funciona

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Tem coisas que são óbvias, não é mesmo? Por exemplo, é lógico que o clima influencia o comportamento das pessoas nas diferentes regiões do planeta. Todo mundo sabe disso, ora bolas. Tem climas que dão aquela leseira no sujeito e, portanto, produzem gente preguiçosa e ignorante, certo? Eis como um filósofo retrata as pessoas nascidas em certa zona climática:

"Seus humores são grosseiros e seus ventres, impudicos. Assim, falta-lhes agudeza de compreensão e clareza de inteligência, e eles são sobrepujados pela ignorância, obtusidade, falta de discernimento e estupidez."

De quem será que o nosso filósofo está falando, hein? Ora, dos habitantes… do norte da Europa, é claro. Tirei do texto acima a menção à "tez pálida" do suposto povo de imbecis, só para criar algum suspense. As afirmações são de autoria de Said al-Andalusi (1029-1070), magistrado que, como o nome sugere, vivia em Al-Andalus, a Espanha muçulmana da Idade Média.

Mosque-Cathedral of Cordoba, Spain
Mesquita-Catedral de Córdoba, na Espanha - akulamatiau - stock.adobe.com

Al-Andalusi está simplesmente repetindo o que parecia óbvio para muitos outros pensadores islâmicos da época. O "racismo" de seu raciocínio, aliás, era aplicado tanto a louros europeus quanto a muitos africanos negros. Para essa linha de pensamento, os povos "morenos" do Mediterrâneo e adjacências claramente representavam o ponto médio ideal entre o frio excessivo do Norte e o calor descontrolado dos trópicos. Portanto, era lógico que eles, e só eles, tivessem desenvolvido a civilização, as artes e as ciências, enquanto os outros povos eram "naturalmente" bárbaros.

Estou contando tudo isso porque, nos últimos dias, as redes sociais (ou sociopatas) deste Brasil varonil voltaram a ser invadidas por gente famosinha que defende argumentos muito parecidos com os de Al-Andalusi —só que invertendo o sinal, é claro, colocando os europeus no topo. Dizem que pessoas de países tropicais vão querer aproveitar a vida em vez de "progredir"; que gente de origem africana tem QI "inferior". Um dos sujeitos batendo esse bumbo é o deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO) —previsivelmente, bolsonarista roxo.

Há muitos motivos para ficar desanimado diante dessa conversinha de jerico, mas a que mais me irrita no momento é a completa incapacidade, por parte dessa gente, de distinguir entre senso comum e fatos, e de enxergar direito as implicações das trajetórias históricas de cada continente.

Era óbvio para Al-Andalusi que o "auge da civilização" só pode existir nas bordas do Mediterrâneo, assim como é óbvio para os racistas de hoje que só países do norte da Europa e seus herdeiros coloniais na América do Norte e na Oceania são "plenamente desenvolvidos". Mas dizer isso é ignorar alguns fatos inconvenientes:

1) Regiões quentes desenvolveram diversas civilizações avançadas (muitas delas anteriores a qualquer Estado europeu), da Mesopotâmia e do Egito à China subtropical, passando pelas cidades maias da Guatemala, pelo Império Etíope antigo e medieval e pelo esplendor da Índia;

2) A aparente supremacia dos europeus e seus descendentes é um fenômeno recentíssimo e contingente. Até o fim do século 17, o Império Otomano, com sua sede em Constantinopla/Istambul, enfrentou os europeus em pé de igualdade; chineses e indianos foram perfeitamente capazes de barrar o avanço colonialista até essa mesma época;

3) Como nem a composição racial europeia nem a dos países sob avanço colonialista mudou depois desse período, não há razão nenhuma para achar que uma superioridade intrínseca dos europeus —do tipo "QI naturalmente maior"– explica seu avanço. Fatores muito mais complexos e contingentes provavelmente estão por trás dela;

4) Mudanças significativas no QI no espaço de uma ou duas gerações estão mais do que documentadas no mundo inteiro (é o chamado "efeito Flynn"). Alimentação decente, boas condições sanitárias e educação quase certamente seriam capazes de transformar as medições de QI em países africanos ou no Brasil.

O sujeito que ouvir esses argumentos e ainda assim continuar se comportando como um Al-Andalusi 2.0 só pode ser qualificado de um jeito: como racista mesmo.

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