Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes
Descrição de chapéu chuva

Racismo ambiental aumenta risco de tragédia para os não brancos

Pretos, pardos e indígenas têm menos proteção contra danos da crise climática

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Quero crer que o colega Joel Pinheiro da Fonseca não estava num de seus dias mais felizes ao escrever sua recente coluna sobre as enchentes no Rio e a aplicação do conceito de racismo ambiental a elas por parte da ministra Anielle Franco.

Num espírito de caridade interpretativa —caridade essa que, ouso dizer, faltou um pouco ao colunista quando abordou as declarações da ministra—, faço a seguir uma leitura atenta de seus argumentos. Além disso, procuro mostrar por que a categoria de racismo ambiental é uma ferramenta importante para entender o mundo debaixo da sombra da emergência climática que enfrentamos hoje.

Moradores andam de barco pelo bairro Amapá, em Duque de Caxias (RJ)
Moradores andam de barco pelo bairro Amapá, em Duque de Caxias (RJ) - Eduardo Anizelli/Folhapress

Logo no começo, ele escreve: "Então agora devemos acreditar que as enchentes no Rio são fruto do racismo?". Se a fala da ministra realmente tivesse esse sentido, seria, de fato, um absurdo. Mas convém reproduzir a frase de Anielle Franco citada pelo próprio colunista:

"Estou acompanhando os efeitos da chuva de ontem nos municípios do Rio e o estado de alerta com as iminentes tragédias, fruto também dos efeitos do racismo ambiental e climático." Há dois detalhes interessantes aqui indicando que a interpretação do colega desta Folha não é a mais adequada.

Primeiro, a palavra "fruto" está ao lado de "iminentes tragédias", não de "chuva". A ministra liga os efeitos desastrosos das enchentes, e não o fenômeno climático em si, ao racismo ambiental. A distinção é importante. Ademais, ela usa a palavra "também". Trata-se, portanto, de um fator que agrava o problema, que aumenta vulnerabilidades, e não uma relação simples de causa e efeito. Afirmar algo diferente disso é falsear o que foi dito.

Nosso escriba prossegue dizendo: "Segundo dados que a própria ministra citou, 69% dos moradores de favelas no Rio se declaram pretos ou pardos. Se a enchente é fruto do racismo, será que aqueles 31% de brancos não foram igualmente atingidos? Se foram —e é óbvio que foram— então a causa não é o racismo".

Além da reiterada confusão entre causalidade e vulnerabilidade (é da segunda que a ministra fala), ele não parece parar um instante para se perguntar sobre o significado do número. Uma checagem rápida dos dados do último Censo brasileiro mostra que, no município do Rio de Janeiro como um todo, os autodeclarados pretos ou pardos perfazem 54,29% da população, enquanto 45,43% se consideram brancos.

A diferença racial entre as populações na favela e no Rio como um todo deveria acender alguma luzinha na cabeça de quem atacou a ministra. Falar em racismo ambiental reflete simplesmente o fato de que, embora a chuva caia igualmente sobre os justos e os injustos, como diz o Evangelho (e que a atmosfera onde estamos cuspindo carbono fóssil também seja uma só para todos), alguns são menos iguais que os outros.

O bacana da Zona Sul pode ter razoável grau de certeza que seu apartamento não vai inundar nem despencar do barranco, diferentemente do que se dá com o morador médio das favelas cariocas. A chance de que o primeiro seja branco e o segundo seja negro é alta. E, mais importante ainda, os processos que levaram a família de cada um deles a ir parar em seus respectivos lugares foram mediados pelo racismo —inclusive o preconceito social e do mercado de trabalho, aquele que o colunista diz achar relevante em outros contextos.

E, é claro, nada disso vale apenas para contextos urbanos. Não é por acaso que a posse tradicional da terra por parte de populações não europeias é uma das primeiras vítimas do avanço do desmatamento. Não é por acaso que os moradores não brancos de países insulares do Pacífico têm muito menos recursos para lidar com a subida do nível dos mares do que os britânicos ou holandeses que colonizaram vários desses países. Nada disso é miragem ou invencionice.

Cito, para concluir, outro raciocínio do colega que me parece preocupante. "A academia não é um oráculo que baixa suas verdades para nós", diz ele. "Pelo contrário: hoje a academia é que precisa provar sua relevância."

Bem, faz mais de 20 anos que eu atuo como jornalista de ciência. Isso significa que parte do meu trabalho é fazer com que o conhecimento acadêmico desça do pedestal e dialogue com a população de forma descomplicada e desarmada.

Mas se arvorar desse jeito na voz dos "reles leigos" que querem contestar um ramo do conhecimento sem considerar suas implicações me parece açodado e perigoso. O preço de seguir esse caminho foi pago com o sangue de centenas de milhares de brasileiros nos anos da pandemia. Pelo sim, pelo não, deixo ao Joel um breve conselho gandalfiano: o homem sábio fala apenas do que entende.

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