Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Reinaldo José Lopes

Namoro entre espécies de borboletas faz outra surgir na Amazônia

Tríade de insetos é a prova viva de que a barreira de reprodução entre espécies muitas vezes é porosa

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Sempre acabo dando risada sozinho quando recordo o meme-piada que andou circulando pela internet tempos atrás. Diz a lenda que ensinaram um papagaio a ficar repetindo a palavra "Depende" e pronto: o bicho ganhou um diploma de biólogo.

Pois é isso: a vida existe perpetuamente no reino do "Depende". Pense, por exemplo, no chamado "conceito biológico de espécie" que a gente aprende na escola. Espécies seriam grupos formados por indivíduos que conseguem se reproduzir entre si e gerar descendentes férteis. Nada mais simples que isso, não? Bem, depende, diriam certas borboletas.

Refiro-me a um trio de espécies tropicais do gênero Heliconius. As três borboletas foram objeto de um intrigante estudo publicado recentemente, com participação de cientistas da UFPA (Universidade Federal do Pará) e da Unicamp, entre eles Clarisse Mendes de Figueiredo e André Lucci Freitas. A colorida tríade de insetos é a prova viva não apenas de que a barreira de reprodução entre espécies muitas vezes é porosa (algo que já está claro há muito tempo) como também de que esse tipo de "transgressão" pode gerar novas espécies de animais.

Os três tipos de Heliconius são designados pelos nomes científicos H. pardalinus, H. elevatus e H. melpomene. Os indivíduos analisados no estudo foram coletados em diversos países amazônicos (entre eles o Brasil) e andinos. Todas essas espécies, aliás, costumam ocorrer juntas na Amazônia. Apresento-as nas fotos aqui embaixo.

Borboleta "Heliconius pardalinus"
Borboleta 'Heliconius pardalinus' - Reprodução

Batendo o olho nas asas dos bichos, vemos que a H. pardalinus se destaca por um belo padrão "pele de tigre", enquanto a H. elevatus e a H. melpomene, muito parecidas entre si, têm um design bem menos carnavalesco, preto nas bordas e castanho no meio, com apenas duas manchas mais claras.

Borboleta da espécie 'Heliconius elevatus'
Borboleta da espécie 'Heliconius elevatus' - Creative Commons

Mas as aparências enganam. Análises de DNA anteriores tinham mostrado duas coisas: 1) na verdade, apesar da aparência bem diferente, H. pardalinus e H. elevatus é que são as parentes mais próximas entre si; 2) em algum momento do passado, a H. elevatus cruzou com a espécie mais distante, a H. melpomene, e por isso sua aparência "puxou" à dela.

Borboleta da espécie "Heliconius melpomene"
Borboleta da espécie 'Heliconius melpomene' - Creative Commons

Novas análises genéticas feitas pelos autores do trabalho indicam que a H. elevatus se separou de sua "prima de primeiro grau" há cerca de 200 mil anos, e a data é mais ou menos a mesma para a chamada "introgressão", ou seja, o momento em que ela recebeu os genes que a transformaram numa "sósia" da H. melpomene. Mas calma, a coisa fica ainda mais doida.

Os dados de DNA mostram que, na natureza, de vez em quando continuam ocorrendo cruzamentos entre H. pardalinus e H. elevatus, e quase nunca com a terceira espécie. A diferença genética entre essas duas espécies é de apenas 1%.

Entretanto, essa pequena porção do DNA forma "ilhas" de diferenciação genética que não somem, apesar dos cruzamentos. Elas tendem a estar ligadas a características cruciais para a distinção entre uma espécie e outra, como a escolha de parceiros, o padrão de cores e o formato das asas e as plantas que elas escolhem como hospedeiras (em geral, aparentadas ao maracujá). E o mais comum é que essas ilhas de diferenciação genética tenham sido "doadas" pela espécie mais distante, a H. melpomene.

A conclusão dos pesquisadores é que a H. elevatus ganhou seu status de espécie separada, muito provavelmente, num cruzamento fortuito com a H. melpomene 200 mil anos atrás. A hibridização –ou "mestiçagem" entre espécies– fez com que os ancestrais dela ganhassem características únicas que não desaparecem mesmo quando ocorrem cruzamentos com parentas próximas.

Ainda é cedo para dizer se muitos exemplos semelhantes a esses talvez estejam se escondendo bem debaixo dos narizes dos biólogos. Mas, mesmo que eles sejam raros, o caso da borboleta é uma bonita demonstração de como as separações que a gente enxerga na Árvore da Vida correspondem a processos, a ondas que vão e vêm, e não a muralhas absolutas. A vida, já dizia aquele sábio de "Jurassic Park", sempre encontra um caminho.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.