Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira
Descrição de chapéu Copa do Mundo

Espanha e o Golias habituado a ser pequeno

É provável que a gente perca, mas, se ganharmos, no fundo eu sempre soube

Na sexta (15) é o Portugal x Espanha; na quarta, os espanhóis despediram o treinador. Temo o pior. Para Portugal, claro. Portugal está habituado a ser pequeno, a estar em desvantagem --que é uma posição bem confortável. Ser grande, pelo contrário, é muito difícil. Sobretudo para quem não está habituado.

Cristiano Ronaldo, cinco vezes melhor do mundo, durante treino em Kratovo
Cristiano Ronaldo, cinco vezes melhor do mundo, durante treino em Kratovo - Francisco Leong/AFP

Um gigante está sempre desgraçado: se ganha, é um acaso normal a que ninguém liga; se perde, é uma catástrofe que todos assinalam. Vem na Bíblia, no livro de Samuel. Golias era um gigante fabuloso, imbatível. Ganhou, de certeza, inúmeros combates antes do que lá vem descrito. Que se saiba, só perdeu um. Pois é exatamente esse que vai parar ao maior best-seller de todos os tempos. Azar, não?

Hoje percebemos que a luta era desigual e injusta para Golias. O maior adversário era o dele. Golias lutava contra o seu próprio medo (que, por ser o medo de um gigante, é igualmente gigante), contra a sua reputação e contra toda a história. E ainda contra um pastor que tinha jeito para fazer estilingues. Três abstrações e um pastor. São muitos inimigos. David combatia apenas um simples gigante. Se David perdesse, nem viria no jornal, quanto mais na Bíblia.

Ora, Portugal é o campeão da Europa em título, tem o vencedor do prêmio de melhor jogador do mundo e vai jogar contra uma equipe que ficou sem treinador dois dias antes. Mais Golias do que isso é impossível. Pobres de nós.

Nem sempre foi assim. Na final da Eurocopa, éramos David: jogávamos na casa do adversário, Cristiano Ronaldo lesionou-se e abandonou o jogo aos 25 minutos, ninguém acreditava em nós. Nem nós acreditávamos em nós: eu festejei a vitória com champanhe morno, como um idiota, porque nunca me ocorreu que fosse preciso colocar a garrafa no gelo.

Ganhamos por um a zero, na prorrogação, quando um jogador chamado Éder, que quase nunca jogou, fez da perna direita um estilingue e chutou de fora da área. As minhas últimas palavras, antes de a bola entrar, foram: "Para que chutar daí, rapaz?" Depois foi gol e eu, claro, festejei dizendo: "Eu sempre soube!".

Esse comportamento é perfeitamente aceitável entre torcedores. Só quem não percebe nada de futebol acha que é ridículo. De qualquer modo, receio que as roupas de gigante nos estejam largas e atrapalhem, no jogo de sexta. É provável que a gente perca. Mas, se ganharmos, no fundo eu sempre soube.

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