Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Estou a ficar vintage

O prêmio que o mundo dá às pessoas que não jogam nada fora

Às vezes eu vejo um carro novo e penso: “Olha só: um carro novo”. Porque sou uma pessoa interessante e complexa. Mas depois passam alguns anos, volto a cruzar-me com o mesmo modelo de carro, e o que antes era novo, nessa altura, parece antiquado.

Mais uns anos passam e o carro deixa de parecer antiquado, já é outra coisa: é um clássico. O carro continua sendo exatamente o mesmo, no entanto.

Tempo passou sobre ele e sobre mim. E eu não vi o tempo passar, só vi esses sinais. Mas porque é que o tempo faz questão de mudar a minha opinião sobre um Volkswagen? Em que dia (hora?, minuto?, segundo?) o carro deixou de me parecer novo e passou a ser velho?

Ilustração
Luiza Pannunzio/Folhapress

E quando ficou subitamente um clássico? Sempre que vejo alguém dirigindo um carro clássico, pergunto: “Será que esta pessoa, quando comprou o carro, em 1960, já sabia que estava a adquirir um clássico de 2018? E quantos anos ela teve de dirigir um carro velho até um dia sair da garagem e constatar: ‘que curioso, eu tenho é um clássico’?”

Acontece quase o mesmo à roupa. Várias peças passam duas vezes pelo nosso guarda-roupa. Primeiro a gente vai à loja comprá-las, quando são novas. Depois usa, elas vão ficando velhas, saem de moda, e a gente oferece, ou joga fora. E, vinte anos depois, vamos a outras lojas comprá-las de novo, porque são vintage. O vintage é o prêmio que o mundo dá às pessoas que não jogam nada fora. Durante anos elas são feias crisálidas que acumulam tralhas; de repente são lindas borboletas que têm uma coleção de antiguidades. 

Com as pessoas é ligeiramente diferente. Eu ando a tentar ser vintage, mas não consigo: estou apenas a ficar velho. Para as minhas filhas, todo mundo com mais de 25 é velho. Mas a minha avó referia-se muitas vezes a homens de 80 anos como “um rapaz da minha idade”. 

No entanto, a minha avó, as minhas filhas e eu concordamos que um carro novo é um carro novo, e um clássico é um clássico. Mas o Zidane, para a minha avó, é uma criança; para as minhas filhas, é um velho; e, para mim, é um rapaz da minha idade. Talvez essas observações sobre a relatividade do tempo não sejam novas. Mas, em princípio, estão a caminho de ser vintage.

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