Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Conversa de travesseiro

Era meu desde criança; baixo, duro, possivelmente com uma ou duas manchas

Eu tinha o mesmo travesseiro desde criança. Era baixinho, nada como esses travesseiros firmes, esticados, arrogantes, muito conscientes da sua importância. Era até duro, mas encaixava perfeitamente entre os meus braços e a cabeça.

Eu durmo de bruços, pelo que um travesseiro grosso obriga a minha cabeça a estar na posição em que ficaria se alguém me fizesse um mata-leão enquanto eu durmo.

Depois eu casei e levei o travesseiro. A minha mulher disse: "A sério? Isto?". Mas não tinha discussão. Era o meu travesseiro, o único com o qual eu conseguia dormir em paz. "Bom, mas os ácaros?" Nunca dei por eles. Para mim, é mito. "Então e mudar o revestimento?" Não, ninguém mexe. "É que parece estar podre, sabes?" Não, é o jeitão dele.

Ilustração de Luiza Pannunzio Ricardo Pereira Araújo de 28.out.2018.
Luiza Pannunzio

Anos passaram. E, sempre que eu viajava, dormia mal nos hotéis. Tentei de tudo: rasgar os travesseiros e tirar algum enchimento, dispensar o travesseiro e dormir sobre uma toalha dobrada... Nada funcionava.

E então ocorreu-me o óbvio: passar a viajar com o travesseiro. Levava-o na mala, punha a fronha do hotel e dormia descansado fora de casa pela primeira vez na vida. Assim foi. Noite maravilhosa.

No entanto, no dia seguinte, quando voltei ao quarto, a cama estava feita e o travesseiro não estava lá. No seu lugar, um dos travesseiros do hotel: firme, esticado, arrogante.

Fui à recepção. Perguntei pelo meu travesseiro. O funcionário não sabia. Mas, provavelmente tocado pelas lágrimas que via nos olhos de um homem adulto, levou-me ao local onde eles colocavam os travesseiros.

Era um armazém enorme, com tantos travesseiros que era impossível descobrir o meu. "Como é que ele era?", perguntou o homem. Bom, era baixo, duro. É possível que tivesse uma ou duas manchas. Gente insensível talvez dissesse mesmo que estava podre. Ninguém tinha visto —e, se tivesse, em princípio teria jogado fora.

Voltei para o quarto. A minha mulher escondia mal a sua felicidade. "Vamos arrumar um travesseiro novinho. Vais ver que vai ser ótimo. Aquele estava tão velho... Acabou por ser melhor assim, tinha muitos anos."

Nos momentos mais difíceis, cheguei a imaginá-la a subornar os empregados para me incinerarem o travesseiro. Enfim, talvez a ideia de uma conspiração internacional contra o meu travesseiro seja um pouco exagerada. Mas agora fizemos 20 anos de casamento. Vou levá-la para um hotel. E, se um funcionário achar que ela já não serve, e a substituir por uma versão mais nova —firme, esticada, arrogante— aí eu quero ver.

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