Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Ricardo Araújo Pereira
Descrição de chapéu

A calma deixa-me nervoso

Ao ouvir sons da natureza para tentar relaxar, percebi o quanto ela é perversa

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Cheguei a casa tão cansado que cometi um desses atos inconfessáveis. Volto a dizer que me sentia exausto e talvez não estivesse na plena posse das minhas capacidades.

Mais vale dizer logo: procurando relaxar, abri o YouTube e pus um vídeo de sons da natureza. Não me orgulho, mas, num impulso, foi o que fiz.

Sei que olhar intencionalmente para um vídeo de sons da natureza está apenas um ou dois degraus abaixo de marcar uma limpeza dos chacras.

Não se preocupem porque fui imediatamente castigado.

O vídeo de sons da natureza começou a tocar, na minha televisão, e eu comecei a raciocinar, o que é perigoso —embora, felizmente, raro.

A natureza, pensei, deseja matar-nos. Seja sob a forma de tufões, tigres ou avalanches, a verdade é que deseja matar-nos. Por isso é que a gente já não vive nos lugares em que se ouvem os sons da natureza, mas sim em casas insonorizadas com vidros duplos. Fará sentido fugir desses sons e depois tentar relaxar embalado por esses mesmos sons? 

A natureza é perigosa —e perversa. Há dias assisti a um documentário que ensinava o seguinte: a natureza dotou a zebra de riscas para a proteger dos mosquitos. 

Os mosquitos ficam confusos com o padrão das riscas e, por isso, não pousam na zebra. Ora, a natureza sabe muito bem que o predador da zebra é o leão.

Se a natureza quisesse proteger a zebra do predador tê-la-ia pintado de verde. O leão passava, achava que era salada e ia procurar uma gazela.

O que a natureza conseguiu, pintando riscas na zebra, foi fazer com que o leão não tenha moscas na comida. Não protegeu a zebra do predador, tornou-a mais apetitosa.

Entretanto, o meu vídeo tinha sons de baleias. O autor do vídeo, obviamente, pensou: que melhor maneira de descontrair do que ouvindo o som de um bicho que, se me apanhar, me engole? Comecei a ficar inquieto. Se a zebra soubesse construir apartamentos e passasse a viver neles, tentaria relaxar colocando vídeos com som do rugido dos leões? Duvido.

Além disso, vir para a cidade ouvir sons de floresta é como ir para a floresta ouvir sons de cidade. Quem mora na floresta não relaxa assistindo a vídeos de congestionamento de tráfego na marginal Pinheiros. Até porque está preocupado a escutar os sons da floresta. Não para relaxar, mas para sobreviver.

Ilustração
Luiza Pannunzio

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.