Era Outra Vez

Literatura infantojuvenil e outras histórias

Era Outra Vez - Bruno Molinero
Bruno Molinero
Descrição de chapéu Livros

Censura a Roald Dahl surge porque livro infantil não é tratado como obra de arte

Uma violência é cometida com maquiagem do bem, sob o pretexto de que o mundo ficará mais inclusivo, seguro e fofo

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A certa altura de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", o narrador de Machado de Assis descreve a personagem Eugênia, que manca por causa de uma deficiência física, desse jeito abaixo.

"O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?"

Aqui poderíamos começar uma série de conversas e discussões sobre temas como capacitismo e machismo, a sociedade brasileira do século 19, o papel social da literatura e até as fronteiras entre a figura do escritor e a do narrador que é um canalha.

Foto da campanha Machado de Assis Real, com imagem colorizada que representa o autor como negro
Foto da campanha Machado de Assis Real, com imagem colorizada com o autor negro - Fotomontagem

Mas acho que ninguém consideraria plausível que as próximas edições de um dos maiores clássicos do maior escritor brasileiro passassem a ser publicadas sem esse capítulo, sob a justificativa de que parte dos leitores poderia se sentir mal ao ler o trecho. Ou ainda pior. Ninguém acharia a menor graça se o texto fosse adaptado e começasse, por exemplo, com "o pior é que era coxa —mas tudo bem, porque certamente não há nada de errado com isso", alterando a prosa machadiana.

O nome disso seria censura —com o agravante de picotar e alterar uma das obras fundamentais da literatura brasileira. Mas por que é diferente com Roald Dahl?

O autor britânico, morto em 1990, nunca foi propriamente um sucesso de vendas no Brasil, mas é um dos principais nomes da literatura infantojuvenil do Reino Unido e best-seller no mundo inteiro, com mais de 250 milhões de cópias vendidas. Por aqui ficou mais conhecido após adaptações de sua obra para o cinema, como "A Fantástica Fábrica de Chocolate", "Matilda", "James e o Pêssego Gigante" e "O Fantástico Sr. Raposo".

Nos últimos dias, um anúncio da editora Puffin Books, que publica os livros de Dahl e é braço do conglomerado global Penguin Random House, fez barulho ao confirmar que passou a editar, suprimir e mudar trechos que possam ser considerados ofensivos atualmente. "Palavras importam", diz o aviso. "Este livro foi escrito há muitos anos e, portanto, revisamos o idioma para garantir que ele continue sendo apreciado por todos hoje."

Ao comparar as edições mais recentes com as versões anteriores dos livros de Dahl, o jornal The Telegraph percebeu que a revisão se aproximou mais de uma mutilação e encontrou mais de cem mudanças nas histórias.

São muitos os exemplos, sobretudo em termos e palavras relacionados a peso, saúde mental, violência, gênero e questões raciais, que foram cortados ou reescritos. Não existem mais "gordos" e "feios". Em "As Bruxas", as alterações se concentram em termos relacionados às mulheres. Até "old hag" (que pode ser traduzido como velha bruxa), por exemplo, virou "old crow" (ou velho corvo).

É esse mesmo livro que traz uma das mudanças mais intervencionistas. Numa parte sobre as tais bruxas serem carecas e usarem cabelos falsos, Dahl escreve que "você não pode sair puxando o cabelo de toda mulher que encontrar". Mas à nova edição foi adicionado um adendo: "Existem muitas outras razões pelas quais as mulheres podem usar perucas e certamente não há nada de errado com isso".

Daria para passar o dia aqui esmiuçando mudanças. O mesmo "As Bruxas" viu desaparecer a frase "ele precisa fazer uma dieta". "Matilda" agora não faz mais referência ao escritor Rudyard Kipling, que criou Mogli em "Os Livros da Selva" e foi criticado por representar os ideais do império britânico. "A Fantástica Fábrica de Chocolate" cortou frases como "quem é o menino gordo?".

Mas por que parece plausível intervir na obra de Dahl, reescrevê-la e alterar o seu sentido?

A resposta mais superficial e fácil é a bandeira da proteção à criança. Censura-se para proteger a indefesa infância contra ideias, palavras e significados que, na opinião dos censores, podem prejudicar essa fase tão idílica da vida humana.

Isso é verdade, mas somente até a página dois. Ora, por que então não censuramos "Memórias Póstumas de Brás Cubas"? É um livro obrigatório nas escolas brasileiras, faz parte do dia a dia de milhões de adolescentes, está disponível em qualquer biblioteca, é cobrado nos vestibulares. Não deveríamos também proteger os jovens de passagens que podem ser lidas como capacitistas e machistas?

Roald Dahl está de terno e gravata e sorri de leve para a câmera
Retrato do autor Roald Dahl, morto em 1990 - Reprodução

O abismo entre Machado e Dahl, na verdade, é gerado pelo fato de a literatura infantojuvenil dificilmente ser encarada como obra de arte. Não se cogita mudar trechos de Machado de Assis, refazer pinceladas de Van Gogh, suprimir atos de Shakespeare. Tudo isso soa como violência. Mas tudo tudo bem passar o trator sobre Roald Dahl, Monteiro Lobato, Hergé, Irmãos Grimm, Maurice Sendak, Ana Maria Machado e tantos outros autores para esse público que foram censurados ou ameaçados de censura ao longo das últimas décadas.

Livros para crianças e adolescentes ainda penam para serem lidos como experiências estéticas e narrativas. No fundo, sempre são encarados por pais, professores, governos, jornalistas e editores como meros braços pedagógicos, com objetivos específicos, como ensinar a reciclar o lixo, escovar os dentes, lavar as mãos, obedecer aos adultos, não fazer birra ou qualquer outra coisa do tipo.

Sendo assim, se a moral da história é mais importante do que a própria história, qual é o problema de mexer no que for preciso para que essa mensagem fique mais clara? Afinal, é só uma historinha, um livrinho, um desenhinho e outros tantos diminutivos.

Aí mora o prato cheio para a censura. Uma violência é cometida com maquiagem do bem, sob o falso pretexto de que o mundo ficará mais inclusivo, seguro, fofo e iluminado. Mas por trás dessa camada superficial resta apenas a matéria-prima de qualquer censura praticada por qualquer ditadura ou governo autoritário, seja ele de esquerda, seja ele de direita: a violência, o desrespeito e o desejo de proibir, nunca de educar, contextualizar, explicar ou ensinar.

Ilustração de "Matilda", de Roald Dahl
Ilustração de "Matilda", de Roald Dahl - Penguin Random House/Divulgação

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