Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Se houvesse o direito de nunca ser ofendido, a nossa vida se tornaria impossível

O que Salman Rushdie escreveu nos 'Versos Satânicos' são palavras, já o punhal que o cegou é, sem dúvida, um punhal

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No dia sete de julho de 2020, a revista Harper’s publicou uma carta, subscrita por 153 signatários. Era uma espécie de manifesto pela liberdade de expressão que apontava Trump como uma "ameaça real à democracia" e lamentava a existência de um ambiente de intolerância e censura em ambos os lados do espectro político.

A carta era assinada por gente como Noam Chomsky, Margaret Atwood, Martin Amis, John Banville, Anne Applebaum, Steven Pinker, Fareed Zakaria, Atul Gawande, J.K. Rowling e Salman Rushdie.

Na altura pensei que era estranho intelectuais renomados terem-se dado ao trabalho de dizer umas coisas tão óbvias. Mas apenas três dias depois, outra carta foi publicada criticando a primeira.

Na imagem criada por Luiza Pannunzio uma faca equilibra o livro Os versos Satânicos de Salman Rushdie em cima de uma poça de sangue. A frase "ocidente em silêncio" compõe o desenho.
Ilustração para a coluna de Ricardo Araújo Pereira - Luiza Pannunzio

Acabava dizendo que os subscritores da carta da Harper’s tinham somente dificuldade de "lidar com críticas válidas". Que "a liberdade intelectual dos intelectuais brancos cis nunca tinha sido ameaçada". E que eles "nunca tinham enfrentado consequências sérias, apenas desconforto momentâneo."

Nos dois anos que se seguiram, um homem foi agredido por dizer uma piada no palco do Oscar, outro foi agredido por um atacante armado quando fazia comédia no palco do Hollywood Bowl, e Salman Rushdie foi esfaqueado 17 vezes –e lida agora com o desconforto momentâneo de ter ficado cego de um olho e sem o uso de uma das mãos.

Parece claro que os signatários da primeira carta, muitos dos quais não eram brancos nem do sexo masculino, sabiam do que falavam.

Há duas ideias muito populares, hoje: uma é que as pessoas têm o direito de não ser ofendidas; a outra é que palavras são equivalentes a ações.

Estão ambas erradas. Se as pessoas tivessem o direito de não ser ofendidas, a vida seria impossível. Tudo tem potencial para ofender alguém – e ficar calado não é solução, porque como sabemos há silêncios que também ofendem.

E, assim como uma imagem não é a realidade, também as palavras não são ações, e é por isso que é inútil a gente tentar defender-se de um bandido articulando a palavra "pistola".

É importante não esquecer que quando alguém diz que as palavras são como punhais está a usar uma figura de estilo.

As palavras que Rushdie escreveu nos "Versos Satânicos" são palavras. O punhal que o cegou é que é um punhal.

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