Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Pelo prazer de enganar, todo sofrimento vale a pena

Quem não entende a malandragem julga que o malandro é malandro para facilitar a sua vida

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Quando leio as notícias segundo as quais os professores universitários pedem trabalhos aos alunos e recebem textos impecáveis, sem gralhas nem erros ortográficos, descobrindo assim que os alunos encomendam os trabalhos ao ChatGPT, fico naturalmente preocupado.

Preocupado e indignado. São alunos universitários. O futuro do país. E fazem isso.

No desenho A4 versão digital, uma pessoa branca sentada numa elegante cadeira usa calças mais curtas e tênis vans - lê um jornal na altura da cabeça o que nos impossibilita de saber se é um homem ou uma mulher. Na capa do jornal está a seguinte manchete: “Acabou a esperança? Homens e mulheres de amanhã não possuem a mais básica capacidade de enganar professores.” Na outra folha do jornal, vemos que há uma matéria sobre CHATGPT. Acompanhando esta pessoa, um outro homem sentado numa cadeira ao lado direito, com computador no colo usando moletom, calça e tênis preto.
Ilustração de Luiza Pannunzio para coluna de Ricardo Araújo Pereira de 3 de dezembro de 2023 - Folhapress

Eles não têm o discernimento de acrescentar uma gralha aqui, colocar mal uma vírgula acolá, de modo a camuflar o fato de o texto ter sido escrito por uma máquina.

Que esperança podemos ter num mundo melhor se os homens e mulheres de amanhã não possuem a mais básica capacidade de enganar professores? Com que competências vão enfrentar o mercado de trabalho e a vida em geral? Esta geração está perdida.

No meu tempo não havia ChatGPT e estudávamos pelos apontamentos da Susana. E nos exames tínhamos de conseguir disfarçar que estávamos todos a copiar pelo Mendonça. Estes jovens de agora não querem esforçar-se para nada.

Isto são malandros que não sabem ser malandros. Dão mau nome à malandragem. O malandro é malandro por uma razão essencial: enganar os outros dá muito prazer.

Quem não entende a malandragem julga que o malandro é malandro para facilitar a sua vida. Ora, nem sempre isso acontece. Às vezes, dá mais trabalho ser malandro do que viver uma vida a que se costuma chamar honesta.

Por exemplo: mentir é muito cansativo. Alguém pergunta: "Você já leu tal livro?" E a gente diz: "Claro." Mas não leu. Segue-se um conjunto extenuante de tarefas. É necessário memorizar que, sempre que estivermos na presença daquela pessoa, para todos os efeitos lemos aquele livro.

Além disso, é preciso falar do livro que não se leu sem deixar que se perceba que não foi lido.

Parece difícil, mas é mais difícil do que parece. Não basta dizer frases genéricas, do gênero: "Trata-se de uma obra admirável". Há que ser mais preciso, não deixando de ser vago.

"Ah, sim, 'Os Irmãos Karamazov'. Não é possível entender a Rússia sem ele. Uma das tragédias da minha vida é não poder ler a versão original. Para captar de fato aqueles ambientes."

E daí passar para uma reflexão sobre a precariedade do acto de traduzir.

Daria muito menos trabalho ler o raio do livro. Ou admitir que não o lemos. Há muitos livros no mundo, não é vergonha não ter lido um. Mas, pelo prazer de enganar, todo o sofrimento vale a pena.

É um sacerdócio. Respeitem-no, jovens.

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