Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Assim como nós não perdoamos a quem nos tem ofendido

A paródia das drag queens nas Olimpíadas é uma blasfêmia sobre outra blasfêmia

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A reconstituição de um quadro, na abertura dos Jogos Olímpicos, indignou espectadores de todo o mundo. A certa altura da cerimônia, um grupo de drag queens posou de modo a, ao que parecia, reproduzir o célebre quadro "A Última Ceia", de Leonardo Da Vinci, o que naturalmente melindrou um grande número de pessoas.

A este tipo de pessoa costuma chamar-se "floco de neve", para indicar uma espécie de hipersensibilidade, mas é uma alcunha enganadora, porque estes flocos de neve não costumam ter sensibilidade nenhuma. Se tivessem, não teriam se indignado desta forma. Como é evidente, teriam se indignado muito mais.

O quadro de Da Vinci representa Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo que constitui uma flagrante violação do segundo mandamento: "Não faças para ti ídolos, nenhuma representação daquilo que existe no Céu ou na Terra." Ou seja, a paródia das drag queens é uma blasfêmia sobre outra blasfêmia, e não se percebe porque é que o senhor Da Vinci —que, além do mais, partilhava com as drag queens algumas inclinações— ficou isento de críticas.

No desenho, os traços remetem a obra - Última Ceia de Leonardo da Vinci, mas antes - o leitor se depara com os arcos olímpicos em primeiro plano. Observando bem o desenho, vemos um arco íris na janela bem atrás de  Jesus que ocupa o centro do desenho. A obra - Última Ceia retrata a refeição que Jesus teve com seus apóstolos antes de ser capturado e crucificado. A pintura é uma referência para todos nós e nos acompanha há centenas de anos. Leonardo da Vinci captura o instante quando Jesus revela que um de seus amigos o trairá. Mostra momentos antes da Eucaristia, com Jesus pegando o pão e uma taça de vinho como símbolos-chave do sacramento cristão - junto de seus 12 apóstolos.
Ilustração de Luiza Pannunzio para coluna de Ricardo Araújo Pereira de 11 de agosto de 2024 - Luiza Pannunzio/Folhapress

Por outro lado, e ainda mais grave, os próprios Jogos Olímpicos —realizados, como o próprio nome indica, em homenagem aos deuses do Olimpo— são uma flagrante violação do primeiro mandamento: "Não terás outros deuses além de Mim." O número das drag queens é, por isso, uma blasfêmia acerca de uma blasfêmia, levada a cabo no âmbito de uma blasfêmia. Que, no meio desta caldeirada de blasfêmias, os ofendidos consigam divisar apenas uma, parece-me insensível —e, já agora, blasfemo.

Do outro lado, alguns disseram que não havia razão para indignações, porque a paródia não era sobre o quadro de Da Vinci, mas sim sobre a pintura "A Festa dos Deuses", do artista holandês Jan van Bijlert.

Este argumento tem dois problemas. O primeiro é que o quadro de Van Bijlert é, evidentemente, a versão pagã do quadro de Da Vinci, pelo que é ele mesmo uma paródia do original. O segundo é que, se a paródia das drag queens fosse sobre a última ceia, também não haveria problema nenhum.

Vivemos numa sociedade em que tudo pode ser parodiado. Os ofendidos costumam lamentar que sejam sempre os cristãos as vítimas deste tipo de afronta. "Com uma determinada religião que eu cá sei não fazem eles paródias", dizem.

Embora eu tenha uma vaga recordação de, ali mesmo, em Paris, alguém ter feito aqui há tempos umas brincadeiras com Maomé, vale a pena examinar esta lamúria, que talvez fique mais clara se for exposta deste modo: "Ah, no tempo em que a gente os matava por causa deste tipo de coisa eles piavam mais fininho."

Em última análise, o lamento significa que aquela mensagem de dar a outra face e de perdoar a quem nos ofende é deplorável. Não sei quem teve essa ideia, mas, ao que tudo indica, no entender de quem se ofendeu com a cerimônia é uma pessoa que merecia ser parodiada.

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