Rodrigo Tavares

Professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017

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Rodrigo Tavares
Descrição de chapéu União Europeia

Não há no Brasil empresário tão consensual como Rui Nabeiro

Com origens humildes, português morreu nesta semana, aos 91 anos

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As três mais altas figuras do Estado português –o presidente da República, o primeiro-ministro e o presidente da Assembleia da República– compareceram ao funeral do empresário português do café Rui Nabeiro, realizado na pequena vila de Campo Maior, grampeada à fronteira com Espanha, no Alentejo mais remoto.

Nabeiro não era apenas o mais popular empresário português. Era também o português mais consensual. Ao longo da sua vida foi aplanando a topografia cultural, econômica e regional que geralmente aparta os portugueses, emergindo como uma figura pública, sem a projeção internacional de Eusébio ou Amália, mas cultivada nacionalmente como uma celebridade. E isso apesar de ser um azarão.

O empresário português Rui Nabeiro em 2019
O empresário português Rui Nabeiro em 2019 - Agência Ecclesia/MC

Apenas com o ensino fundamental concluído, recebeu, em 2022, a mais elevada distinção atribuída por uma universidade portuguesa, o grau de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Coimbra.

Com uma infância marcada pela "pobreza, analfabetismo e falta de assistência médica", como declarou na universidade, criou um império econômico –o Grupo Delta– que conta com dezenas de empresas ligadas à indústria do café, vitivinicultura, imobiliário e turismo e fatura quase meio bilhão de euros por ano.

Apesar de ter militado na esquerda e ser próximo ao Partido Socialista, o líder da direita portuguesa, Luís Montenegro, fez-lhe longos elogios ("um homem bom, um exemplo de capacidade empreendedora e responsabilidade social"). Pese embora Portugal seja um país hipercentralizado e o empresariado esteja acantonado nas regiões de Lisboa e Porto, Nabeiro sempre viveu em Campo Maior, no sertão português. É aí que está situado o centro nevrálgico de um império empresarial que opera globalmente, da China ao Brasil.

A unanimidade em torno de Nabeiro deriva do seu papel como benemérito e filantropo, como destacou a Folha numa das poucas referências ao empresário na imprensa brasileira. Era a sua imagem de marca. "Uma inspiração para todos quantos podem devolver à sociedade um pouco daquilo que esta lhes deu", escreveu, nesta semana, o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

A Delta baralha a forma como nós olhamos para a sustentabilidade corporativa. Em 2022 a empresa foi considerada a mais sustentável em Portugal (Merco Responsabilidade ESG Portugal) e é a marca com maior índice reputacional no mercado português (Global RepScore Pulse).

Geralmente as empresas mais sustentáveis são as que inserem, de forma sistêmica e sistemática, práticas de responsabilidade ambiental, social e de boa governança corporativa na sua corrente sanguínea, da estratégia às operações. Certamente a Delta adotou iniciativas interessantes nessa área (como o lançamento em 2019 de uma cápsula de café 100% orgânica e biodegradável), mas o seu último relatório de sustentabilidade é de 2018 (e não segue convenções internacionais de reporte de sustentabilidade nem é auditado), não tem compromissos de descarbonização e opera como uma empresa familiar de capital fechado, não sendo alvo da regulamentação nacional e europeia em questões de diversidade de gênero, por exemplo.

As empresas sustentáveis, também são aquelas cujos produtos ou serviços finais podem gerar impactos positivos na sociedade ou no meio ambiente. Não é o caso do café.

O pilar mais forte da sustentabilidade da Delta é a filantropia corporativa. No Brasil, esse tipo de abordagem nem sempre desfrutou da melhor reputação. Foi muitas vezes usada para maquilar más práticas empresariais ou usada como um anabolizante para acelerar o valor reputacional de uma empresa. Uma espécie de fisiculturismo corporativo.

Na academia, costuma-se dizer que a filantropia corporativa é uma prática dinossáurica, que remete a magnatas do aço ou do petróleo, como Andrew Carnegie ou John Rockefeller, e que impacta apenas tangencialmente o negócio e o desempenho financeiro de uma organização.

A Delta demonstra o contrário. A solidariedade corporativa não é um elemento episódico ou marginal da empresa, mas um dos eixos mais determinantes da sua identidade e cultura, desde a sua fundação em 1961.

Como a sociedade civil portuguesa e o tecido empresarial têm índices de envolvimento cívico muito baixo, comparado com outros países europeus, denunciando uma sociedade com baixo espírito coletivo, o caso da Delta torna-se ainda mais manifesto.

A empresa também é sobretudo reconhecida por direcionar o seu investimento social privado para a comunidade local, a região de Campo Maior. A maioria dos habitantes da vila são funcionários da empresa. E, por isso, ao apoiar as estruturas locais de ensino, saúde ou lazer, a Delta instila um forte sentimento de gratidão que certamente é retribuído com lealdade, motivação e produtividade no chão de fábrica. A capacidade da empresa de atrair e reter talentos é alta, se considerarmos que está sediada numa vila com 8.000 habitantes, entre montados de azinho e campos agrícolas. Tudo isso influencia o desempenho econômico e a longevidade da empresa.

Vista de Campo Maior, em Portugal
Vista de Campo Maior, em Portugal - Google

Um relatório recente do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis), no Brasil, com tendências e boas práticas em investimento social privado, destacou que a "filantropia comunitária está em alta." Se a filantropia corporativa for externa ao negócio, o impacto é sobretudo reputacional. Mas, se for deslocada para o seio das decisões empresariais, o impacto é também financeiro.

Nabeiro tinha uma visão espontânea e generosa das práticas filantrópicas, consciente das suas próprias origens e das carências da população local. Mas, com isso, descobriu também uma nova fórmula empresarial de sucesso. No Brasil, não há nenhuma empresa que tenha adquirido uma altíssima reputação nacional devido ao investimento nas comunidades locais. A reputação de uma empresa geralmente deriva de outros fatores, como a qualidade ou a sustentabilidade dos seus produtos.

Vai ficando cada vez mais claro que a filantropia empresarial tem relevância financeira (materialidade). Por isso, recentemente, as principais agências de risco de crédito refinaram as suas metodologias para incorporarem as credenciais ESG das empresas, incluindo o impacto que geram nas comunidades locais. Se S&P, Moody’s ou Fitch quiserem conhecer boas referências nesta área, basta visitarem Campo Maior, um polo urbano situado estrategicamente a meio caminho entre Lisboa e Madri, como costumava ironizar Rui Nabeiro.

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