Rodrigo Tavares

Professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017

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Rodrigo Tavares

A Igreja Católica e um novo modelo de desenvolvimento econômico

Aplicabilidade da 'Economia de Francisco de Assis' expõe desafios

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Nasci em um país que só se tornou país depois que a Igreja Católica reconheceu a sua independência (bula pontifícia "Manifestis Probatum", de 1179). E foi nesse mesmo país que a mesma igreja organizou, na semana passada, uma festa com 1,5 milhão de jovens crentes, mostrando a sua atualidade e força.

Mas há uma área em que o Vaticano, ao longo da sua história milenar, tem exercido menos influência: a economia e as finanças. Até que o papa Francisco decidiu ressuscitar, há poucos anos, um conjunto de ideias que foram originalmente articuladas pelo papa Leão 13 (1810-1903) e que atualmente são conhecidas como "Economia de Francisco [de Assis]".

Em 2018, a igreja publicou "Oeconomicae et pecuniariae quaestiones: considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro". Em 2019, o papa escreveu uma carta incentivando empreendedores e economistas a criar "uma economia diferente". E em 2022 foi organizado um grande encontro na Itália no qual foi assinado um pacto entre o papa e os jovens. Começou-se a criar um movimento heliocêntrico em torno dessa "economia."

Mas que doutrina é essa? Apesar do nome, restringe-se a um rosário de princípios de inspiração moisaica. Mandamento 1: o mercado é um instrumento, não um fim em si. Mandamento 2: o consumismo é um problema exacerbado pela economia de mercado. Mandamento 3: crescimento econômico não é a solução para a redução da pobreza. Mandamento 4: o lucro não deve ser o único objetivo da atividade empresarial.

É possível argumentar que nada disso é verdadeiramente novo. A Bíblia aborda a questão da pobreza (Levítico 19:9-10, Deuteronômio 24:19-22), do crédito (Êxodo 22:25, Levítico 25:35-37, Deuteronômio 23:19-20) e do comércio (Ezequiel 27, Gênesis 37:25). A "Parábola dos Talentos" (Mateus 25:14-30) e a "Parábola do Administrador Injusto" (Lucas 16:1-13) tocam em temas como investimento, administração e uso responsável dos recursos. Os profetas do Antigo Testamento frequentemente se pronunciavam contra a injustiça econômica e a exploração, enquanto o Novo Testamento destaca a virtude da doação e da aplicação da ética e da moral em práticas econômicas.

Além disso, as encíclicas papais "Rerum Novarum" (1891), "Quadragesimo Anno" (1931) e "Mater et Magistra" (1961) abordaram as condições de trabalho, os direitos dos trabalhadores e as responsabilidades de empregadores. São temas reforçados pela encíclica "Caritas in Veritate" (2009), de Bento 16.

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A Basílica de São Pedro, no Vaticano - Zé Carlos Barretta - 19.set.20/Folhapress

A Economia de Francisco não é uma teoria econômica abrangente, mas tenta dar alguma consistência e modernidade a esses episódios bíblicos e encíclicos. Na Jornada Mundial da Juventude, na semana passada, em Lisboa, uma universidade portuguesa inaugurou uma cátedra dedicada a esse tema, com a presença do papa, que salientou a importância de uma economia mais justa, sustentável e solidária.

Sempre houve no mercado financeiro quem norteasse a sua aplicação de capital por princípios católicos ou cristãos. As igrejas do Reino Unido, da Suécia ou da Finlândia são investidoras profissionais pujantes e muito reconhecidas no mercado, administrando bilhões de dólares. A Santa Sé também investe globalmente em todas as classes de ativos, desde ações à renda fixa e imobiliário. Nos EUA, há dezenas de fundos que não investem em empresas que não estejam alinhadas com a doutrina da Igreja. É a partir dessas bases que a "Economia de Francisco" poderá ter um efeito agregador e mobilizador.

Naturalmente essas ideias são de nicho. Aplicá-las seria como puxar o freio de mão de um carro em alta velocidade. O mundo corporativo e financeiro opera segundo uma doutrina distinta. Mas não são ideias que devem ser simplesmente descartadas, até porque há produção acadêmica fora da igreja ou quadros regulatórios para sustentar essas premissas.

Os professores universitários australianos Clive Hamilton e Richard Denniss escreveram "Affluenza: When Too Much is Never Enough", sobre os impactos econômicos negativos do consumismo excessivo.

Abhijit Banerjee, Esther Duflo, William Easterly e Amartya Sen estudaram a complexa relação entre crescimento econômico e redução da pobreza. Desde 2023, as instituições financeiras na Europa têm que comunicar tanto o seu lucro quanto o impacto (negativo ou positivo) das suas transações. O lucro é um elemento cardinal, mas não exclusivo.

Sobre a moralização do mercado financeiro, recomendo "The Market as God: Living in the New Dispensation", de Harvey Cox, e "O Que o Dinheiro Não Compra" de Michael J. Sandel. Ambos argumentam que os mercados não devem ser vistos como fins em si mesmos, mas como ferramentas para servir ao interesse público. Não são oniscientes, onipotentes e onipresentes. No total, são centenas de publicações sobre esses temas.

Mas nem sempre a igreja será a melhor promotora das suas próprias ideias. A estrutura governativa da Santa Sé (governo soberano) inclui um "ministério" da economia, atualmente liderado pelo economista leigo espanhol Maximino Caballero Ledo, e um Conselho para a Economia, que gerem as finanças da igreja.

Para promover a "Economia de Francisco" em nível mundial, a Santa Sé precisaria aplicar o princípio da transparência em sua própria casa. Há décadas que a igreja é criticada pela divulgação reduzida das suas contas públicas. Ironicamente, o papa Bento 16 chegou a afirmar em uma encíclica papal que "seria desejável que todos os organismos internacionais e as organizações não governamentais se comprometessem a uma plena transparência." O papa Francisco tem encetado alguns esforços nessa direção, mas muitas das receitas, benefícios fiscais e investimentos públicos da Igreja Católica em nível global continuam um segredo dos deuses.

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