Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Nunca mais haverá tanta inocência quanto nos filmes dos anos 1990

De que forma bandas como Hootie & The Blowfish explicam o fim da história

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The New York Times

No Twitter, na semana passada, parecia que todo mundo estava compartilhando comunicados do GPT-3, o chatbot de inteligência artificial capaz de responder a praticamente qualquer pergunta com extraordinária facilidade, desde que você não se importe que as respostas tenham suposições políticas seguramente condicionadas por um liberalismo convencional de inflexão libertária.

Provando que as mentes humanas ainda têm alguma vantagem modesta sobre nossos senhores robôs do futuro próximo, passei mais tempo pensando em uma conversa claramente de humano para humano no Twitter do que qualquer uma das respostas GPT-3 que inundam minha linha do tempo:

Antes que meus pensamentos começassem a se voltar para as questões políticas, houve o simples choque do reconhecimento. Eu não era um verdadeiro fã de Dave Matthews ou algo assim, mas, como um rapaz branco dos anos 1990, eu necessariamente ouvi muito três dessas bandas (Blues Traveler provavelmente menos) em meu final de adolescência e início da faculdade. E Bernstein está certo de que é difícil formular exatamente o que as tornou tão distintas ou explicar o que aconteceu com sua vibe.

Arte com palavra "Liveralism" (Liberalismo)
Sam Whitney/The New York Times

Talvez você possa dizer algo semelhante sobre a era Lilith Fair de vocalistas femininas, um análogo aproximadamente contemporâneo. Mas acho que a "vibe" da vocalista feminina é um pouco mais fácil de destilar do que exatamente o que acontece em "August and Everything After" ou "Cracked Rear View".

Se eu descrevesse Natalie Merchant da era "Ophelia" e "Motherland" (dois álbuns realmente bons, aliás) como cantando folk feminista místico, seria redutivo, certamente, mas diria algo sobre o conteúdo dela. Enquanto um descritor de som equivalente, como "rock ‘dudebro’ suave", diz a você o "quem" —quem canta, quem gosta—, mas um pouco menos o "quê" da música.

Então, a formulação de David Grossman está correta? Hootie é a trilha sonora da fase descomplicada do fim da história de Francis Fukuyama, o auge da confiança liberal e do poderio americano e descontração pós-ideológica?

Não tenho tanta certeza, já que não tenho certeza se não há tensão ou inquietação espiritual nesse tipo de música. Uma obra de arte pura —"é o fim do conflito ideológico, e eu me sinto bem"— não deveria ser um pouco menos angustiada, um pouco mais ensolarada do que Darius Rucker cantando "Deixe-a chorar, se as lágrimas caírem como chuva / Deixe-a cantar, se isso alivia toda a sua dor"? Ou Adam Duritz cantando tristemente "Está chovendo em Baltimore, baby / Mas tudo o mais é o mesmo"?

Se quisermos ser técnicos, a música tema de "Friends" —indiscutivelmente a obra de arte popular mais Fukuyama de todos os tempos— ou algo da era boy band e início de Britney Spears não é mais próxima da verdadeira música do pós-Guerra Fria?

Ainda assim, quando olho para essa música, há algo na análise de Grossman que soa verdadeiro. Não é exatamente a alegria no final da história que define a estética Hootie-DMB-Counting Crows, mas talvez seja o que se pode chamar de uma sensação de que a vida comum é suficiente (um sentimento estabilizador fundamental para uma sociedade liberal).

Que você pode ter uma rica experiência humana, cheia de alegrias e tristezas, sem o material extremo pré-moderno ou do século 20, guerra e Deus, utopia e todo o resto (e sem divisão racial também: a composição multirracial da Dave Matthews Band e Hootie & The Blowfish também é importante aqui).

Que você pode ser uma pessoa humana realizada apenas através dos altos e baixos da vida suburbana americana aparentemente normal. Que os tropos da experiência heterossexual masculina do início da idade adulta, como "o desejo de ser famoso" ou "a garota incrível que o abandona" ou apenas "sair com seus amigos e sentir um pouco de pena de si mesmo" são todos suficientes como combustível para os sentimentos fortes que compõem uma vida interessante.

E quando esses sentimentos o põem para baixo você pode ficar deprimido de uma forma que é pessoal, ao invés de existencial –isso é apenas sobre você, e não sobre tudo o que há de errado com a vida sob o capitalismo tardio ou o que quer que seja.

Nesse caso, a subsequente mudança negativa na cultura americana não deve ser entendida simplesmente como uma mudança da alegria para a angústia, da felicidade para a infelicidade —embora isso esteja claramente presente, especialmente nas letras das músicas. Tem sido uma mudança no sentido de que a vida americana média, tanto em suas alegrias quanto em suas tristezas, oferece significado suficiente para valer a pena ser abraçada e celebrada.

Em seu lugar, há uma sensação de que a normalidade americana em qualquer forma —quer isso signifique capitalismo, liberalismo, secularismo, heterossexualidade, branquitude ou qualquer outra coisa— é inadequada, destrutiva ou condenada e que, mesmo em suas tristezas, os cantores da década de 1990 não estavam acordados para o quão sombrias as coisas realmente são.

Tendo me estendido um pouco para reivindicar uma ligação entre Hootie e o fim da história, vamos recuar para um terreno mais seguro e fechar com uma pergunta mais adequada aos meus interesses culturais: a saber, quais filmes dos anos 1990 contam como "Fukuyamacêntrico"? Curiosamente, não são os melhores filmes do melhor ano moderno do cinema, 1999. Como escrevi em uma coluna alguns anos atrás, as ofertas daquele ano na verdade anteciparam todos os nossos atuais descontentamentos:

"Devíamos ter previsto os dias ruins chegando. Os cineastas de 1999 o fizeram, como observou Jesse Walker, da revista Reason, quando foi lançada a lista dos 100 melhores de The Ringer. 'Eleição', 'Matrix', 'O Clube da Luta', 'A Bruxa de Blair', 'Como Enlouquecer seu Chefe', 'O Talentoso Ripley', até mesmo (Deus nos ajude) 'A Ameaça Fantasma'… Está tudo lá, tudo o que se seguiu, ansiedade de classe e alienação no local de trabalho, descontentamentos do fim da história e trotes alimentados pela internet, eleições disputadas e prisões de realidade virtual, além de uma república cambaleante esperando por seu Palpatine".

Os melhores filmes dos anos 90, então, não eram filmes de fim da história. Quais eram? A onda de romances adolescentes e comédias sexuais da era Clinton, definitivamente —de "As Patricinhas de Beverly Hills" a "Mal Posso Esperar" a "American Pie: A Primeira Vez é Inesquecível"— puras celebrações de costumes suburbanos ricos, com carnalidade e doçura romântica andando de mãos dadas.

"Forrest Gump", indiscutivelmente —talvez um pouco de direita demais, mas basicamente uma celebração de seguir seu caminho alegremente através de tempestades ideológicas e sair rico e abençoado do outro lado. "Gênio Indomável", talvez —o gênio do colarinho azul começa como um semirradical cansado, mas passa por terapia e finalmente abandona a guerra de classes e se junta à meritocracia, embora em seus próprios termos distintos, com a bênção do melhor amigo (futuro eleitor de Donald Trump). "Austin Powers", definitivamente —uma viagem por um mundo pós-Guerra Fria em que as revoluções do passado produziram uma síntese ideal, liberdade e responsabilidade, uma combinação muito bacana.

E, finalmente, o filme dos anos 1990 mais "Fukuyamacêntrico" de todos: "Mensagem para Você", no qual o romance online anônimo, o capitalismo corporativo voraz e uma Nova York em rápida gentrificação fornecem o cenário para um romance fofo à moda antiga e felicidade doméstica aconchegante.

Sim, o filme contém uma autocrítica, uma figura de Cassandra —o namorado ludita interpretado por Greg Kinnear, protestando contra o futuro tecnológico. Mas o personagem de Meg Ryan fica com o capitalista corporativo de Tom Hanks, não o alarmista da internet de Kinnear, e o espírito de sua peculiar livraria antiquada é apresentado como vivendo dentro de uma gigantesca no estilo Barnes & Noble, num departamento infantil administrado por seu ex-funcionário.

Como uma destilação dos aspectos esperançosos do fim da história —o melhor do passado excêntrico preservado com amor dentro do consumismo do presente—, é difícil superar essa sequência, tudo embalado num filme que continua sendo um dos melhores exemplos da era prateada da comédia romântica. Liberdade e responsabilidade, capitalismo de consumo e excentricidade, namoro pela internet e namoro real… que época foi essa!

Nunca mais haverá tanta inocência.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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