Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Ciências humanas buscam manter relevância e acabam a caminho da autodestruição

Essência do fracasso das humanidades é tentar se conectar com a ideia de progresso

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The New York Times

Nas respostas a um recente lamento pela morte das ciências humanas, um longo artigo de Nathan Heller para a The New Yorker sobre o declínio da cadeira de inglês, você pode ver uma ilustração de sua própria tese: os casos mais deprimentes da matéria foram destacados e repassados nas redes sociais por pessoas que provavelmente nem começaram a ler o longo texto.

Um trecho em particular apareceu e reapareceu durante dias no meu feed no Twitter. Apresentava Amanda Claybaugh, reitora de graduação de Harvard e professora do departamento de inglês. Ela foi uma das várias acadêmicas que descreveram, nas palavras de Heller, uma "orientação para o presente" entre os estudantes universitários contemporâneos tão poderosa que eles "perderam as origens no passado".

Local de armazenamento de papel ultrafino para livros em fábrica da França - Stephane de Sakutin - 6.fev.2022/AFP

"Na última aula que dei sobre 'A Letra Escarlate'", ela disse a Heller, "descobri que meus alunos estavam realmente se esforçando para entender as sentenças como sentenças, tendo problemas para identificar o sujeito e o verbo… Suas capacidades são outras, e o século 19 faz muito tempo."

Como todo mundo que conseguiu achar seu caminho por Nathaniel Hawthorne no ensino médio, li isso com uma mistura de presunção e horror. Então, naturalmente, rolei a tela para o próximo indício de declínio, o próximo sinal do apocalipse cultural.

O que eu não fiz foi clicar e ler todo o artigo de Heller (embora eu o tenha lido agora, juro!). Ainda mais notadamente, eu de fato não peguei um exemplar de "A Letra Escarlate" ou qualquer outro romance do século 19 e comecei a lê-lo por prazer.

"A resposta à pergunta 'O que há de errado?' é, ou deveria ser, 'eu estou errado'", escreveu certa vez G.K. Chesterton. E qualquer resposta à pergunta sobre o que aconteceu com as ciências humanas deve incluir a mesma resposta. Os alunos de graduação de Harvard que não conseguem analisar uma frase complexa do Renascimento americano são parte do problema. Mas também o é o colunista de jornal formado em Harvard e autodenominado conservador cultural que regularmente despeja pensamentos profundos na TV pop, mas não leu um romance inteiro do século 19 para seu próprio prazer privado em... bem, vamos apenas dizer que faz algum tempo.

Observe os detalhes aí –"inteiro" e "prazer privado". Li páginas de romances vitorianos recentemente, em geral voltando a um território familiar por causa de alguma ideia que estou tendo, e comecei livros inteiros, sempre com as melhores intenções. Enquanto nossa família ouvia o musical "Os Miseráveis" repetidamente, eu li as primeiras centenas de páginas do romance de Victor Hugo, indo longe o suficiente para planejar um ensaio comparando a confiança insana de sua voz autoral com o estilo tímido da ficção contemporânea –um ensaio, porém, que exigia terminar o livro de Hugo, o que não fiz. Quanto aos meus recentes ataques a volumes um pouco mais curtos do século 19, quanto menos se falar, melhor.

Orgulho-me de poder geralmente acompanhar a estrutura gramatical desses livros, mas em todos os outros aspectos sou o leitor descrito por Claybaugh, muito apegado ao presente disruptor para entrar totalmente na linguagem complexa do passado.

E também me pareço com outros personagens do texto de Heller. O acadêmico que descreve como trocou a leitura de romances pela navegação em sites? Eu. Os colegas que esse mesmo acadêmico descreve, que "se consideram cultos", mas "não conseguem deixar" de pegar o iPhone, mesmo numa apresentação ao vivo? Eu de novo. A celebridade acadêmica por excelência, Stephen Greenblatt de Harvard, reconciliando-se desajeitadamente com a irrelevância de sua própria disciplina ao falar sobre os aspectos literários dos seriados de televisão? Não eu, com certeza, não sou tão clichê –exceto pelo ensaio que acabei de escrever sobre "Yellowstone", e o anterior sobre "Fleishman está em dificuldades" e antes disso... (suspira com autodesprezo, cai numa cadeira resmungando sobre o "elemento dickensiano" em "The Wire" –A Escuta).

Mas passemos da autoflagelação à prescrição. Porque ainda há a segunda ressalva a ser mencionada: não estou lendo romances do século 19 para mim mesmo, mas os li para outras pessoas recentemente. Especificamente, li em voz alta para meus filhos mais velhos, primeiro "Orgulho e Preconceito" e agora (em uma experiência um pouco mais intensa) "Jane Eyre".

Não se preocupe, isto não será uma discussão sobre como o pró-natalismo salvará as humanas. (Embora os departamentos de inglês dependam de uma população em idade universitária estável ou crescente.) Em vez disso, é sobre por que é paradoxalmente mais fácil ler algo denso para crianças, que podem não entendê-lo completamente, do que ler o mesmo livro para si mesmo –porque a leitura para crianças impõe uma separação radical de outras formas de distração e entretenimento, de um modo que é difícil para qualquer disciplina puramente pessoal igualar.

A essência do fracasso das humanas ao longo da última geração, mas especialmente na era da internet, é uma recusa a aceitar que um tipo semelhante de separação seja necessário para o que os guardiões das artes liberais estão tentando preservar.

A busca, compreensivelmente, sempre foi manter a relevância e a conexão –com a política, com a vida profissional, com quaisquer tendências que apareçam na vanguarda da moda, com a ideia de "progresso". Mas essa busca só pode terminar em autodestruição quando a coisa à qual você está tentando desesperadamente se ligar –especialmente a cultura e o espírito da internet da era do smartphone– está na verdade devorando todos os hábitos mentais necessários para a sobrevivência de sua própria disciplina. Você simplesmente não pode sustentar um humanismo sério como parte integrante de uma cultura digitalizada; você tem que separar, pelo menos até descobrirmos uma maneira de ser digital que não seja apenas a maneira do viciado ou do surfista deslizando e nunca indo fundo.

"As humanas selaram seu próprio destino", tuitou Jacob Shell, professor da Universidade Temple, em resposta ao artigo de Heller, "quando se recusaram a adaptar-se a desempenhar o papel necessário de crítica intelectual 'direitista' da ciência social, da tecnocracia". Como direitista, estou inclinado a ver essa ideia e ampliá-la, e sugerir que, se você se preocupa com a transmissão das humanas através da era digital, deve olhar mais para as academias cristãs clássicas do que para o corpo docente de Harvard.

Mas uma versão mais modesta do argumento de Shell seria apenas que as humanas precisam ser orgulhosamente reacionárias de alguma forma, pressionar conscientemente contra a ordem digital de alguma forma, separar-se conscientemente e fazer dessa separação uma virtude.

Essa separação não precisa ser tão radical quanto a sugerida por um recente artigo de opinião no Wall Street Journal, "A faculdade deveria ser mais como uma prisão", cuja autora, Brooke Allen, discutiu a seriedade incomum com que os presidiários que ela ensina encaram o cânone literário. Mas, no mínimo, envolveria abraçar uma identidade como os exilados internos da multiversidade moderna –recusando qualquer ressentimento dos edifícios tecnológicos generosamente financiados porque esse financiamento é corrupção, e sua própria vocação é mais esotérica e monástica, recusando qualquer reivindicação de relevância política porque o que você está oferecendo está acima e antes dos negócios práticos do mundo.

Significaria banir todos os símbolos da era digital das salas de aula e das bibliotecas, fechar a internet, oferecer seu trabalho muito mais como uma iniciação aos mistérios, um mergulho nas profundezas. Isso significaria cultivar um conjunto de habilidades ainda menos imediatamente úteis para a vida profissional tecnocrática do que ler um texto denso do século 19 –memorização e recitação, para seus colegas de classe, se possível, para um público de 12 anos, se necessário.

Alguma dessas coisas restauraria as humanas à sua antiga glória? Não, em princípio não. Mas antes da restauração vem a sobrevivência.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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