Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Ross Douthat
Descrição de chapéu The New York Times

Deus controla a história?

O cristão sério acredita que a história revela intenções e desígnios divinos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

The New York Times

Depois de defender na coluna da semana passada a tese da maldade do stalinismo e das virtudes do anticomunismo no início da Guerra Fria, pensei que poderia ser arrastado para um debate sobre marxismo-leninismo nas redes sociais.

Não. Em vez disso, consegui me envolver numa discussão sobre outra questão também relacionada ao totalitarismo: se a destruição da Alemanha de Adolf Hitler foi um julgamento verdadeiro e justo de Deus, o Todo-Poderoso.

Imagem de Jesus pintada na Igreja da Natividade, em Belém, que alguns fiéis dizem que começou a chorar e a abrir e fechar os olhos - David Silverman - 29.nov.16/Reuters

Essa questão surgiu de duas discussões sobre a extrema-direita. Uma foi ocasionada pela publicação de um perfil do Pervertido da Idade do Bronze na revista The Atlantic por Graeme Wood. O pseudônimo pertence a um autor e espécie de influencer que é uma das principais vozes online do pensamento "vitalista", ou nietzschiano ou, se preferir, simplesmente fascista. O outro debate surgiu a partir de revelações sobre o escritor e provocador da direita Richard Hanania, que admitiu (e lamentou) ter atuado na juventude como redator para publicações racistas usando um pseudônimo.

O estilo de pensamento de extrema-direita envolvido em ambos os casos considera a decadência ocidental como um fato consumado, ao mesmo tempo em que argumenta que o cristianismo é um recipiente frágil para qualquer tipo de renascimento cultural. Sua grande tese é que um conservadorismo que se inspira em fontes clássicas pagãs e abraça algum tipo de identitarismo racial poderia ser mais, digamos, vibrante em seu engajamento com os tempos.

Uma versão exata desse argumento circulava na plataforma X, o antigo Twitter. Quando alguém pediu que ele fosse refutado, fiz duas publicações. Em uma, escrevi: "Suponho que uma resposta seja observar que a última tentativa de refundar a civilização europeia com base na herança clássico-teutônica e na eugenia levou a atrocidades indescritíveis e à destruição total do coração da Europa."

Em outra: "A decomposição e a decadência do cristianismo ocidental tornam inevitável o retorno do nietzscheanismo de direita. Mas os cristãos podem dizer com alguma certeza que o julgamento de Deus sobre esse projeto já é evidente."

Essas postagens são entradas superficiais em uma discussão cada vez mais ampla sobre como os cristãos conservadores deveriam encarar uma direita emergente pagã ou pós-cristã –em todas as suas várias formas, materialista e mística, populista e intelectual, representada por personagens radicais como o Pervertido da Idade do Bronze até figuras mais populares, como Jordan Peterson, que parecem balançar na borda da fé cristã.

Ofereci meus comentários sobre nossos possíveis futuros pagãos, inclusive numa discussão no início deste ano sobre a eutanásia com o próprio Hanania (que eu acho que continua sendo um exemplo de libertário pagão, como quer que você entenda a afirmação dele de que evoluiu para um neoliberal), mas há muito mais a dizer sobre o assunto.

Quero seguir numa direção um pouco diferente aqui, porém, porque minha postagem sobre os propósitos de Deus e o Ragnarok nazista inspirou algumas réplicas mal-humoradas do próprio Pervertido da Idade do Bronze.

"Se o julgamento de Deus se faz presente na perda de uma guerra ou nas mãos de perseguidores brutais, isso significa que você acha que Deus julgou Jesus como mal e os romanos como bons?", questionou ele. E depois, "o preço da Guerra dos Trinta Anos, portanto, reflete o julgamento de Deus sobre uma Europa que era muito apegada à religião?"

A primeira pergunta é fácil de deixar de lado, porque os cristãos obviamente acham que a melhor maneira de entender o julgamento de Deus sobre a vida e a mensagem de Cristo é à luz de sua ressurreição, não só de sua morte.

Dizer que houve uma guerra na Semana Santa e Jesus venceu é um jeito grosseiro de passar a mensagem cristã, mas não é imprecisa. E se você quiser enquadrá-la em termos de um conflito entre Roma e Cristo, o católico argumentará especialmente que a guerra em questão terminou com a conversão de Constantino e não com a crucificação, e com a Basílica de São Pedro representando um monumento à vitória.

Mas as várias crises e desastres no mundo cristão desde então, incluindo a Guerra dos Trinta Anos, não admitem esse tipo de interpretação cartesiana. Ao mesmo tempo, o cristão sério não pode simplesmente descartar a pergunta, porque somos obrigados a acreditar que a história revela intenções e desígnios divinos.

De fato, embora permitindo a complexidade dos debates sobre o que Deus deseja em oposição ao que Ele só permite, a ideia de que há uma Providência divina é inevitável quando se pensa numa divindade que fez o mundo e atua na história. É por isso que as interpretações nesse sentido perduram tanto entre os cristãos mais liberais quanto entre os mais tradicionais, com teologias progressistas e conservadoras justificando-se por meio de leituras dos "sinais dos tempos", das estações da história, da ação do Espírito Santo e semelhantes. (E, é claro, muitas cosmovisões teoricamente seculares possuem a mesma ideia disfarçada.)

Quanto mais absolutamente certas forem essas interpretações, mais duvidosas. Discernir as intenções de Deus ao longo de uma vida individual já é bastante difícil; discerni-las através do arco da história é algo a ser feito com humildade máxima.

Mas —humildemente, humildemente— tenho, de fato, uma visão do que a Guerra dos Trinta Anos e suas consequências sugerem sobre as ações de Deus no mundo moderno. E também de como esse estudo de caso difere do exemplo nazista. Começando pelo fato de que o cristianismo não foi destruído nos anos 1600, o papa não cometeu suicídio em um bunker enquanto Roma desmoronava ao seu redor, e as ideias e líderes cristãos não foram lembrados como ícones de depravação absoluta nas décadas e séculos que se seguiram.

Em vez disso, o que se rompeu no século 17 foi uma certa ideia de cristandade, um certo tipo de unidade político-religiosa –e acho que um cristão sério deve ver nessa ruptura algum tipo de julgamento divino acerca dos cristãos que lutaram para manter aquela ordem.

Não se trata necessariamente de um julgamento sobre essa ideia de ordem, que seria a posição de um liberal que acredita na Providência divina –defendendo, portanto, que a cristandade tinha que morrer para que uma civilização superior e mais secular pudesse substituí-la.

Mas certamente um julgamento sobre as formas fratricidas e impiedosas com que tanto os católicos quanto os protestantes tentaram sustentar suas visões conflitantes de uma ordem cristã. É óbvio que acho que os católicos tinham os melhores argumentos teológicos, mas Deus, em sua sabedoria, não permitiu que nenhum dos lados reivindicasse uma vitória certeira, garantindo que qualquer futura cristandade teria de ser reconstruída segundo linhas muito diferentes.

Podia ter sido diferente. Na realidade, mesmo se tomarmos como exemplo apenas trajetória religiosa da Inglaterra, veremos várias maneiras como a Providência poderia ter tornado as coisas mais fáceis para os católicos. Catarina de Aragão poderia ter dado ao seu marido um herdeiro homem; Maria Tudor poderia ter tido um filho; ela e o cardeal Reginald Pole não precisavam ter morrido juntos (no mesmo dia!); a Armada Espanhola poderia ter triunfado.

Mesmo muito mais tarde, como escrevi em uma das minhas colunas da semana passada, com mais sorte uma atmosfera mais favorável, mesmo as rebeliões jacobitas poderiam ter sido bem-sucedidas. Não é preciso alegar certeza sobre os propósitos de Deus para ver certos tipos de tentativa de restauração católica sendo impedidos repetidas vezes.

Mas isso não significou, e isso é fundamental, o fim do próprio cristianismo. De diferentes quadrantes –cristãos e pessimistas, seculares e triunfalistas, agora pagãos e anticristãos–, há um relato da história moderna que confunde a derrocada da cristandade com o declínio do cristianismo. Ele assume que a modernidade como um todo é ou um desdobramento completamente equivocado, como creem os pessimistas cristãos; ou um desdobramento equivocado pelo qual o cristianismo é responsável e do qual não pode nos salvar; a visão pagã de direita; ou então um caminho glorioso em direção à iluminação que torna o cristianismo tradicional irrelevante, perspectiva do otimista secular.

No entanto, para o cristianismo, a era moderna é, na verdade, o entrelaçamento de duas histórias. De um lado, uma história de conflito, fracasso e decepção para muitas instituições cristãs, que foram divididas e perderam força ante outros poderes. E, de outro, da resiliência e disseminação global da religião cristã.

Quer a modernidade liberal represente uma "catástrofe metafísica" quer não, ela criou uma civilização mundial na qual o Evangelho foi pregado nos cantos mais distantes do planeta. Nela, existem hoje, segundo um estudo, 2,6 bilhões de fiéis. Nela, em meio a uma longa crise do catolicismo ocidental, mais jovens católicos compareceram à Jornada Mundial da Juventude em Lisboa do que o total de habitantes de Roma, Paris e Londres na Idade Média juntas.

O alcance extraordinário do cristianismo global é parte do que me torna cético em relação às narrativas de declínio do cristianismo de meus companheiros, e mais inclinado até mesmo a certos tipos de tecnofuturismo, contra interpretações do mundo moderno tardio como um motor de decepção ou uma máquina devoradora de almas.

No mínimo, na medida em que o mandamento central do Jesus ressuscitado –vão e façam discípulos de todas as nações– foi cumprido por e através de nossa modernidade tecnológica e pluralista, qualquer leitura do papel da Providência nessa história não pode ser simplesmente negativa.

E o fato de tantas coisas negativas também terem acontecido às igrejas cristãs do passado sugerem uma resposta diferente aos questionamentos do Pervertido da Idade do Bronze: a alegação de que o cristianismo de que desfruta de mais favores divinos do que o fascismo do século 20 não se baseia na ausência de castigos justificados ou derrotas purificadoras, mas na propagação da fé apesar de, e por meio dessas experiências, em sua resiliência apesar do que seus líderes muitas vezes parecem merecer.

Mas cedamos ao Pervertido da Idade do Bronze no seguinte ponto: nossa era está claramente permitindo um espaço inesperado para antigas alternativas ao cristianismo, das quais seu vitalismo talvez seja a mais iliberal, mas definitivamente não a mais estranha. O que a Providência pretende com isso? Pergunte-me daqui a cem anos.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.