Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Por que Barbie e Ken precisam um do outro

O filme de Greta Gerwig é orgulhosamente feminista, é criptoconservador ou é alguma coisa entre esses dois extremos?

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The New York Times

Entre meados dos anos 1970 e o final da década de 2010, as mulheres americanas, em suas respostas à Pesquisa Social Geral, disseram se sentir cada vez mais infelizes. A tendência não foi drástica, mas foi constante: as mulheres estavam menos felizes nos anos 1980 que nos anos 1970, menos felizes na era de Barack Obama que na era de Bill Clinton e ainda menos felizes sob o governo de Donald Trump.

No caso dos homens, a tendência foi mais complexa. Eles começaram um pouco mais infelizes que as mulheres, mas avançaram durante os anos de Ronald Reagan e Bill Clinton, enquanto a felicidade feminina diminuía. Mas a infelicidade masculina despencou entre a era do 11 de Setembro e a reeleição de Obama, em 2012, estabilizando-se um pouco depois disso.

No período logo antes da Covid, homens e mulheres estavam próximos da paridade, compartilhando mais infelicidade relatada do que haviam experimentado 30 ou 40 anos antes.

Ryan Gosling e Margot Robbie em cena do filme 'Barbie', dirigido por Greta Gerwig
Ryan Gosling e Margot Robbie em cena do filme 'Barbie', dirigido por Greta Gerwig - Divulgação

Esses números são tirados de um novo e fascinante artigo acadêmico, "A Demografia Sociopolítica da Felicidade", do economista da Universidade de Chicago Sam Peltzman. Eles se prestam a várias interpretações, mas quero fazer a leitura mais simples e imediata, que é sugerida por uma tendência diferente tratada no artigo de Peltzman: a vantagem persistente de felicidade desfrutada por casais casados, comparados aos solteiros, algo que se ampliou um pouco desde o início dos anos 1970 e agora está em cerca de 35 pontos em uma escala que vai de -100 a 100.

Ao longo desse mesmo período, os americanos ficaram muito menos propensos a se casar, de modo geral. Em 1970, apenas 9% das pessoas na faixa dos 25 aos 50 anos nunca haviam se casado; em 2018, essa parcela era de 35%.

Assim, logo ali já temos a explicação mais simples possível da queda no nível de felicidade: talvez para as mulheres primeiro, e mais tarde para os homens também, menos casamento significa mais infelicidade.

É provável que o mundo seja um pouco mais complicado que isso. Mas continue me ouvindo, porque quero falar dessas descobertas à luz do debate em curso sobre a verdadeira perspectiva ideológica do megasucesso de US$ 1 bilhão nas bilheterias que é "Barbie". (Alerta: alguns spoilers vêm pela frente.)

A internet quer saber: o filme de Greta Gerwig é orgulhosamente feminista, é criptoconservador ou é alguma coisa entre esses dois extremos?

A leitura mais simples é a feminista. O filme mostra uma "bonecatopia" em que Barbies ocupam todos os cargos e postos importantes (os Kens as acompanham como seus acessórios estéticos) e dizem a si mesmas que seu exemplo resolveu todos os problemas das mulheres também na vida real.

Porém, quando a "Barbie estereotípica" representada por Margot Robbie se envereda em nossa realidade contemporânea, elas descobrem que o sexismo ainda existe, que o patriarcado está disfarçado, mas talvez continue resiliente, que o conselho de direção da Mattel se declara "feminista" com muito orgulho, mas é composto exclusivamente por homens, e que as mulheres do início do século 21 estão sendo chamadas a fazer tudo isso por uma recompensa pífia.

Essa compreensão culmina em um monólogo extenso proferido por uma mãe do mundo real sobre as exigências impossíveis feitas às mulheres contemporâneas. É muito fácil interpretar a fala como um manifesto da era do #MeToo. Quando incluímos a trama em que Ken (Ryan Gosling) fica obcecado com o sonho do patriarcado e lança um golpe machista na Barbielândia, como é que alguém pode ter a ideia de que "Barbie" tem temática "conservadora, antifeminista, pró-família e pró-maternidade", como alega Michael Knowles, do Daily Wire?

A interpretação conservadora se deve em parte ao caráter superdivertido da atuação de Gosling, que faz o despertar masculinista de Ken ser tão hilário de se assistir que foi capaz de desencadear mil memes (sem falar em manchetes em tom de repressão dizendo que os homens estão fazendo uma interpretação errada de "Barbie".)

Mas alguns dos temas conservadores que Knowles descreve realmente estão presentes no filme. A própria Barbielândia é uma utopia em que as mulheres vêm em primeiro lugar e que parece fundamentalmente distópica: plástica, separada da natureza, negando a existência da morte, divorciada do amor e da procriação. O modo como a comunidade das Barbies marginalizam imagens de gravidez e maternidade, sem falar de bonecas bebês, é uma preocupação constante no filme.

"Barbie" parodia os gurus da "machosfera" com seu retrato da revolução kenergética, mas a situação de Ken é tratada com delicadeza; ele está lançando seu golpe principalmente com o objetivo de impressionar Barbie, e afinal, para que servem os homens na paisagem pós-revolução sexual? E o arco narrativo da própria Barbie se distancia da distopia dominada por mulheres e volta na direção da feminilidade incorporada, do mundo real com todos seus resquícios do patriarcado, do fim da pelve de plástico e na direção da possibilidade de maternidade.

Penso que Knowles e outros que fazem uma interpretação conservadora se equivocam quando acham que esse material fala mais alto que os aspectos do filme que ensaiam os argumentos liberais e feministas. Em vez disso, "Barbie" é um filme de padrão feminista, mas que também tem ideias complexas e às vezes confusas sobre o que a revolução sexual fez e que rumo o feminismo deveria seguir.

O filme é contra o patriarcado resiliente, mas encara a alternativa da "girlboss" com cautela. Quer feminilidade e maternidade, mas não quer que os Kens voltem a estar no comando e não sabe realmente para quê os homens devem servir. Um cara pode literalmente organizar uma revolução, mas isso ainda não é o bastante para que Barbie o encare como um amante, um parceiro romântico, um objeto erótico, um marido ou um pai.

E assim o filme termina –lá vai mais um spoiler!—com Barbie fora da Barbielândia, mas sozinha, buscando alguma espécie de destino reprodutivo no ginecologista, com uma dupla de mãe e filha ao lado torcendo por ela e nenhum Ken à vista.

Há um paralelo interessante com o final da série "Girls", de Lena Dunham, outra história formalmente feminista com um subtexto reacionário, que agraciou sua anti-heroína com a maternidade, mas a deixou em um limbo quase matriarcal. Em cada narrativa, o único modo pelo qual as insatisfações atuais de mulheres e homens não podem ser resolvidas é o final feliz que mesmo as histórias sobre a guerra dos sexos consideravam natural e garantido no passado: não um rearranjo do poder político, mas uma parceria romântica; não o domínio de um dos sexos, mas a felicidade de ambos.

Minha posição oficial, como jornalista e crítico de cinema nas horas livres, é que sequências são uma coisa negativa –que um filme original tremendamente bem-sucedido deve poder ser conservado como é, em vez de ser arrastado para a máquina de produção de franquias de Hollywood. Mas eu talvez fizesse uma exceção no caso de "Barbie", nem que fosse apenas para ver o que Gerwig e seu corroteirista e parceiro romântico Noah Baumbach pensam que poderia realmente unir sua Barbie e seu Ken.

No filme que eles fizeram, "Barbie e Ken" é uma afirmação de subordinação reversa, de hegemonia feminina e perda de posição masculina. Na realidade, porém, é possível que nada tenha tanta importância para a felicidade de homens e mulheres, e, de fato, para o futuro da raça humana, quanto se Barbie e Ken vão conseguir converter aquele "e" em algo recíproco e fértil –uma ponte, uma união, um casamento.

Tradução de Clara Allain

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