Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Descrição de chapéu The New York Times

Depois de ver 'Oppenheimer', você precisa ler este livro sobre Stálin

Obra mostra como o anticomunismo que levou à perseguição do 'pai da bomba nuclear' não era simples paranoia

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The New York Times

Com sua recriação histórica profunda, elenco de figuras famosas com aparições provocativamente rápidas, temas científicos, políticos e sociológicos correndo em diversas direções, um filme como "Oppenheimer", de Christopher Nolan, é um incentivo para conhecermos melhor a história que narra.

Minha colega Amanda Taub ofereceu uma lista, começando com o material original do filme, "Prometeu Americano", de Kai Bird e Martin J. Sherwin, e ampliando para "The Making of the Atomic Bomb" [a fabricação da bomba atômica], de Richard Rhodes, "Hiroshima", de John Hersey, e até "Copenhague", peça de Michael Frayn que retrata uma visita feita em 1941 pelo físico alemão Werner Heisenberg ao cientista dinamarquês Niels Bohr, sob a sombra da possível (mas afinal natimorta) busca nazista pela bomba.

A partir daí, pode-se ir mais longe nos enigmas do próprio J. Robert Oppenheimer –por exemplo, em outra biografia dele, por Ray Monk, preferida por estudiosos que conheço–, ou expandir para o fascinante terreno da física do início do século 20 ou os debates intermináveis sobre a decisão de usar a bomba.

O ator Cillian Murphy interpreta o 'pai da bomba atômica' J. Robert Oppenheimer no filme de Christopher Nolan, 'Oppenheimer'
O ator Cillian Murphy interpreta o 'pai da bomba atômica' J. Robert Oppenheimer no filme de Christopher Nolan, 'Oppenheimer' - Divulgação

Mas tenho outra sugestão, que foca uma figura cuja perversidade molda os eventos de "Oppenheimer": não Adolf Hitler, a ameaça tantas vezes citada para justificar a busca por armas terríveis, mas Josef Stálin, que tinha espiões no Projeto Manhattan e que, ao contrário de Hitler, logo teve sua bomba A.

O livro é "Stalin’s War: A New History of World War II" (a guerra de Stálin: uma nova história da Segunda Guerra Mundial), de Sean McMeekin, do Bard College. O subtítulo é um pouco enganador: é menos uma história do conflito do que um retrato focado, até mesmo de forma polêmica, nas decisões e depredações do ditador soviético na guerra, a serviço de um argumento de que devemos ver Stálin, tanto ou até mais do que Hitler, como a figura central na conflagração global, um instigador, manipulador e vencedor final.

A razão para ler McMeekin depois de assistir a "Oppenheimer" é que seu livro fornece um corretivo para o ato final do filme, no qual o espírito de um anti-anticomunismo simplificador prevalece sobre a complexidade política que Nolan carrega na maior parte do filme. (Spoilers históricos leves a seguir.)

Depois de desenvolver a bomba, o Oppenheimer do filme tenta impedir uma corrida armamentista nuclear e se envolve com figuras da Guerra Fria que se aproveitam dos laços dele com comunistas e simpatizantes. Então, numa combinação de ressentimentos políticos e pessoais, um desses "combatentes da Guerra Fria", Lewis Strauss (Robert Downey Jr.), consegue que a autorização de segurança de Oppenheimer seja revogada em um processo judicial com cartas marcadas.

Tenho amigos conservadores, leais à imagem de Nolan como cineasta conservador, que acham que o filme não está do lado de Oppenheimer nessa controvérsia e permite que as ações de Oppenheimer e os argumentos de Strauss mostrem a tese de que ele realmente era narcisista, politicamente ingênuo, irremediavelmente despreocupado com a infiltração comunista em seu projeto e muito mais.

Concordo com eles que o filme dá ao espectador historicamente informado muito material que aponta para essa conclusão mais matizada. Mas, como um texto direto, "Oppenheimer" perde muito dessa complexidade à medida que avança para o final, tornando-se cada vez mais uma história de simples martírio –na qual um gênio imperfeito é injustamente perseguido por "demagogos ignorantes, anti-intelectuais, xenófobos", como escreveu Bird, o cobiógrafo de Oppenheimer.

Portanto, o objetivo da leitura do livro de McMeekin é dar o devido crédito ao anticomunismo do início da Guerra Fria. O que todos aqueles falcões estavam falando, com seus medos sobre a espionagem soviética e a influência de simpatizantes comunistas, seu desejo de ter a bomba como arma potencial contra nosso então aliado Stálin, sua atitude desdenhosa em relação à visão de Oppenheimer da energia nuclear como algo compartilhado e domesticado pela cooperação internacional?

Só isso, sugere "Stalin’s War": eles viram Stálin com clareza. O líder soviético sempre foi tão predatório quanto Hitler, invadindo o mesmo número de países que os nazistas em 1939 e 1940, incentivando a agressão fascista contra democracias ocidentais enquanto construía seu império brutal sob a capa da neutralidade. (Esse encorajamento estendeu-se tanto à agressão japonesa quanto à alemã: McMeekin argumenta que a diplomacia de Stálin com Tóquio em 1941 ajudou a empurrar o Japão para a guerra.)

Stálin tampouco foi uma vítima ingênua e desavisada da operação Barbarossa de Hitler (a invasão da União Soviética em junho de 1941), como diriam alguns clichês históricos. McMeekin argumenta longamente que Stálin se preparava para atacar a Alemanha nazista quando Hitler o atacou, que os dois ditadores estavam basicamente numa corrida para ver quem conseguiria se mobilizar para trair o outro primeiro –e que a derrota soviética inicial aconteceu em parte porque Stálin também estava empurrando seus militares para um alinhamento ofensivo, e eles foram pegos em um "limbo no meio da mobilização".

Uma vez que a invasão alemã fez dele um aliado, primeiro da Grã-Bretanha e depois dos EUA, argumenta o livro, Stálin consistentemente fez o que queria com um Franklin Roosevelt ingênuo e um Winston Churchill frustrado, mas enfraquecido em suas negociações sobre estratégia militar e disposições do pós-guerra.

E essas maquinações soviéticas se beneficiaram da mesma mistura de filocomunismo entre os liberais do New Deal e a espionagem soviética direta que moldava o ambiente de Oppenheimer. O resultado foi um arranjo pós-guerra que deu ao comunismo um vasto novo império na Europa Oriental e logo no Leste Asiático, tudo sustentado por um cinismo profundo e voraz que tornou a Guerra Fria inevitável.

O relato de McMeekin é polêmico, escrito como corretivo para outras histórias e aberto a contra-argumentos. Ele não teve muito êxito em deslocar o lugar de destaque de Hitler como protagonista maléfico de 1939-45, e muitas das opções que as nações ocidentais fizeram ao se aliar temporariamente a Stálin hoje parecem inevitáveis. Não é de surpreender que em 1939 britânicos e franceses temessem mais o ditador com tropas na fronteira francesa do que o ditador prestes a engolir os bálticos, ou que os EUA preferissem uma União Soviética resiliente a uma Alemanha nazista conquistadora em 1941.

McMeekin tem um argumento fascinante de que a invasão soviética da Finlândia em 1939 abriu a possibilidade de uma guerra do Ocidente liberal contra ambos os totalitarismos, com a Grã-Bretanha e uma França ainda não conquistada bombardeando os campos de petróleo de Baku na União Soviética e, assim, minando as máquinas de guerra soviética e nazista. Não estou convencido, entretanto, de que esse contrafactual teria terminado bem para as democracias.

Mas a necessidade de um alinhamento com Stálin contra Hitler, como a necessidade de contratar vários cientistas com ligações comunistas no mesmo período –se isso era necessário para forjar armas atômicas em um curto espaço de tempo–, tem que coexistir com o reconhecimento de que o mundo parecia muito diferente quando as derrotas alemã e depois japonesa se tornaram inevitáveis. No final da guerra, a virada americana na direção de uma intensa suspeita de tudo o que Stálin tocasse era ao mesmo tempo imperativa e possivelmente insuficiente (e acho que McMeekin tem um argumento forte), chegando mais tarde do que deveria para os interesses americanos e para os povos conquistados por Stálin.

A necessidade dessa virada não prova que Oppenheimer, o homem, foi tratado com justiça. Mas o que aconteceu com ele aconteceu por razões diferentes de simples ignorância e xenofobia. E qualquer espectador do filme "Oppenheimer" deve lembrar da malignidade de Stálin, da escala de seu sucesso tanto na conquista quanto na manipulação, enquanto assiste ao desenrolar do complexo destino de seu herói.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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