O pastor Silas Malafaia convocou um boicote contra a Natura por causa de sua campanha de Dia dos Pais estrelada por um homem trans, o ator Thammy, pai do bebê Bento. Sim, eu sei: nada mais previsível.
O pastor joga para sua torcida os amendoins habituais da intolerância que chama de "valores cristãos" —no Brasil, isso dá voto à beça. O departamento de marketing da Natura não devia contar com menos.
Embora não se deva dar palanque a showzinhos desse tipo, decidi falar dele por duas razões. A primeira foi ter gasto algum tempo imaginando o que diria o jornalista Ricardo Boechat (1952-2019), nêmesis do pastor, em um de seus monólogos radiofônicos.
A segunda foi que, na ausência de Boechat, me lembrei de Boycott, o homem que batizou o boicote, e pensei: será que Malafaia sabe que está usando uma arma de origem esquerdista?
Charles Cunningham Boycott (1832-1897), capitão inglês reformado que administrava as terras de um nobre na Irlanda, entrou para o dicionário e para a história das lutas trabalhistas na mesma tacada.
Babacão autoritário, bateu de frente com a Irish Land League, o sindicato dos trabalhadores rurais, e foi alvo de um gelo que se alastrou que nem fogo em floresta cuidada por Ricardo Salles. Cancelamento total: ninguém topava mais trabalhar em suas terras, até sua correspondência deixou de chegar.
Boycott perdeu o emprego de capataz e voltou para casa humilhado, para consternação da imprensa inglesa, que tudo cobria com avidez e partidarismo. O substantivo "boycott" fez sua estreia no Times em 1880.
Não foi o primeiro boicote da história, mas foi o que deu origem a uma palavra nova. A demanda reprimida parecia imensa —do inglês, o termo logo migrou para línguas do mundo inteiro, do alemão ao japonês.
Na era das redes sociais, o boicote se desdobrou no cancelamento. Conserva-se o DNA progressista da palavra, com uma inovação crucial: arma inútil contra adversários políticos juramentados como Boycott, faz grandes estragos entre aliados reais e potenciais.
Noam Chomsky, referência da esquerda, percebeu isso, e com ele os 150 intelectuais de colorações diversas que assinaram no início do mês um manifesto chamando atenção para o perigo representado pela cultura do cancelamento para a liberdade de pensamento, quer dizer, o oxigênio da democracia.
Ontem, nesta Folha, Gregorio Duvivier —por quem minha admiração é incancelável— tentou cancelar o cancelamento como se ele fosse só discordância saudável, jogo jogado, e toda a polêmica ao seu redor, coisa de velho que não entende meme.
Com todo o risco envolvido em refutar a sério um texto cômico, gostaria de observar que, sim, tem gente brandindo marotamente essa carta diante das primeiras críticas. Daí a dizer que a cultura do cancelamento não existe vai uma boa distância.
As sanções que ela envolve são reais, desde a cassação da palavra em fóruns até pedidos de cabeça numa bandeja, passando pela interdição à circulação de obras.
Baseado numa exigência —neopuritana até a medula— de perfeição moral e conformidade ideológica plena, o cancelamento muitas vezes é detonado por discordâncias mínimas ou mesmo fantasmagóricas, detalhes que a histeria das redes amplia monstruosamente.
Não, os 500 e tantos linguistas que pediram à sua associação de classe a destituição de Steven Pinker por causa de um par de tuítes antigos não estavam fazendo meme. Estavam sendo neomacarthistas mesmo.
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