Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues
Descrição de chapéu alimentação

O estranho caso da hemoglobina

Reduzir gestos sociais à pura biologia atenta contra o espírito humano

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Foi um dos momentos inesquecíveis das férias, ainda que o esquecimento, no caso, fosse uma bênção. Mas como esquecer que um dia me serviram picanha com farofa de ovo e jargão médico?

Não vi o evento traumático se aproximar. Recém-inaugurada, a churrascaria era recomendada por muita gente na cidadezinha pitoresca da serra da Mantiqueira, no suculento trecho de filé de costela de montanhas que Minas Gerais divide com São Paulo.

A Heloisa é uma carnívora bem menos empolgada do que eu, mas naquele dia o pêndulo do programa conjugal estava do meu lado. O lugar era bonito e amplo, talvez amplo demais: poucas mesas ocupadas. Não atribuí maior importância àquilo. Só mais tarde me ocorreria uma possível relação entre a clientela escassa e a indigestão linguística servida ali.

Tão loura quanto jovem, a garçonete pareceu estranhar quando pedi minha carne "ao ponto pra mal", como sempre faço. Nada de especial, apenas o "medium rare" da língua inglesa. Normalmente se entende logo, mas a moça precisava ser convencida.

"O senhor quer dizer com um pouco de hemoglobina?", perguntou na lata. Seus olhos muito azuis nem piscaram, parecendo indiferentes ao vocábulo bioquímico que, uma vez pronunciado, passou a emitir guinchos e a se contorcer no centro da mesa.

Carne assada em cima de uma tábua de madeira
Carne 'ao ponto pra mal' - Unsplash

Naquele momento eu devia ter me levantado e ido procurar um sushi. Ou uma feijoada. Horas mais tarde, com a presença de espírito atrasada que os franceses chamam de "l’esprit de l’escalier", me arrependi de não ter dobrado a aposta: "Só hemoglobina não, e os leucócitos? Não vai me dizer que vocês trabalham com bois leucopênicos!".

Como a vida não é esquete, me limitei a balbuciar algo como "preferia que você não tivesse usado essa palavra, mas é isso mesmo". Assim que a garçonete se afastou, a Heloisa levantou a possibilidade –que logo adotei como certeza– de que ela fosse uma agente vegetariana infiltrada, radical e treinada nas técnicas mais avançadas do terrorismo vocabular.

Não funcionou comigo. Terrorista ou não, a palavra absurdamente fora de contexto, traidora de séculos de cultura gastronômica eufemística, passou longe de abalar minhas convicções carnívoras.

A picanha que logo chegou à mesa, passada um pouco além da encomenda ("cadê a hemoglobina que você me prometeu?", mais uma frase que eu não disse), só não foi fagocitada com mais prazer porque ficava bem aquém da reputação da casa.

Nada disso quer dizer que meu carnivorismo seja inabalável. Habito meu tempo e tenho visto a velha paz de espírito associada ao ato de comer bichos cambalear, acossada de todos os lados por argumentos éticos, ambientais e afetivos (tenho uma filha vegetariana, experiência que recomendo a todos).

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Parrilla uruguaia - Divulgação

O caso é que, se os argumentos racionais contra a predação de espécies indefesas abundam, o breve relance de pesadelo linguístico vivido na Mantiqueira não está entre eles. O efeito que aquilo teve foi o oposto —fortalecer minha resistência à medicalização da vida que é uma tendência do século 21.

As intenções podem ser boas, mas reduzir gestos sociais ricos de sentidos culturais à sua dimensão biológica é um atentado contra o espírito humano. Escolhas vocabulares têm consequências.

Começamos chamando carne, frango e peixe de "proteína", acabamos normalizando uma hemoglobina na mesa do almoço. Que tal abrir o olho antes que uma cantada como "vamos lá em casa liberar uma ocitocina no sistema" se torne aceitável?

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