Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Sérgio Rodrigues

A escrita, riqueza humana que a IA ameaça

Em obra de 2013, linguista não podia prever a brusca desvalorização desse capital

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Você já deve ter lido —talvez até nesta coluna— que língua de verdade é a que a gente fala, sendo sua versão escrita um reflexo pálido dessa exuberância, tentativa de domar o indomável, controlar o incontrolável, sabe esse texto? Convém rasurá-lo.

No início do século 20, os estudos modernos sobre a língua se voltaram contra o que o linguista suíço Ferdinand de Saussure chamou de "tirania da escrita", elegendo como seu objeto a oralidade. Muito justo e compreensível, mas...

O livro "Escrita e Sociedade" (Parábola), do linguista alemão Florian Coulmas, argumenta que isso terminou por criar entre linguistas um vício de origem –um preconceito contra a escrita, como se ela fosse "derivada da fala e secundária a ela".

Não é, sustenta Coulmas. Recorrendo à sociologia e à história, ele demonstra que a escrita funda sua própria dinâmica social. A "tirania da escrita" —o fato de ela ser tradicionalmente considerada sinônimo de língua enquanto se distribui de forma desigual na sociedade, servindo a projetos de poder– seria assim "a razão principal para estudá-la".

Cheguei ao livro com atraso, depois que o linguista Marcos Bagno, seu tradutor, o citou recentemente numa postagem de rede social. Se o tivesse lido no lançamento, em 2014, teria economizado algumas palavras ao vento sobre as fascinantes relações entre língua e vida social.

"Escrita e Sociedade" recua até o Código de Hamurábi para afirmar que o texto gravado na pedra em caracteres cuneiformes na antiga língua babilônica por volta de 1772 a.C. –um dos tesouros de rapina do Louvre— era mais do que uma peça protojurídica.

Código de Hamurabi
Código de Hamurabi - Reprodução

"Além de estabelecer um padrão de comportamento a ser observado por todos", escreve o linguista, o código "também oferecia um padrão para a língua babilônica, exemplificando a relação conceitual íntima entre gramática e lei". Essa frase é um farol que ilumina milênios.

Embora o letramento fosse então privilégio de pouquíssimos, como seria por muitos séculos, a simples introdução da escrita na paisagem –e Coulmas é bem convincente na defesa dessa ideia– "mudou a maneira como as pessoas viam o mundo, mudou sua visão de mundo, mudou sua atitude rumo a uma consciência da língua e, em diversos aspectos, mudou a organização da sociedade".

O poder da escrita para forjar uma esfera pública se tornou mais claro a partir do Iluminismo e continuou ganhando relevo à medida que o letramento universal se firmava como meta oficialmente buscada —ainda que jamais atingida— por cada vez mais países.

Não cabe neste espaço a enumeração dos fios que "Escrita e Sociedade" puxa desse novelo, da imposição da língua-padrão como questão de Estado às relações entre letramento e desigualdade, da organização moderna do trabalho ao impacto da revolução digital sobre a escrita. Que as lacunas sirvam de estímulo à leitura do livro.

'Escrita e Sociedade', de Florian Coulmas
'Escrita e Sociedade', de Florian Coulmas - Reprodução

Vale apontar um aspecto em que ele envelheceu mal. No último capítulo, lemos que "a capacidade de produzir textos bem elaborados é um componente comercial do capital humano que alimenta mais pessoas do que jamais antes na história da humanidade".

Publicado originalmente em 2013, "Escrita e Sociedade" não tinha como prever a brusca desvalorização desse capital que a IA promoveria poucos anos depois. Sua conclusão otimista lembra a inocência de um morador de Hiroshima saindo de casa para comprar jornal na manhã de 6 de agosto de 1945.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.